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quarta-feira, julho 06, 2022

Honra à covardia




Por Carlos Andreazza (foto)

O Senado aprovou a PEC Kamikaze. Sem surpresa: um Senado que, para ser Senado, para instaurar uma CPI, direito da minoria, precisa da vara do Supremo. O Senado da CPI da Covid, de tantas provas contra o governo, o mesmo Senado que reconduziu Aras — o empecilho a que o material coletado resulte em denúncia — ao comando do Ministério Público Federal.

Esse Senado — gostosamente emparedado pelo ardil populista — tinha de aprovar a PEC Kamikaze.

Assim votaram os senadores, em síntese: o projeto é inconstitucional, transtorna o já precário equilíbrio econômico na disputa eleitoral, é nocivo para a previsibilidade fiscal, de resto tratorando o rito de tramitação parlamentar que materializa a própria atividade política; mas logo vem a eleição, tenho medo de perder e voto sim.

É PEC golpista — J’accuse! Voto sim.

Parabéns aos rebolantes. Mulheres e homens públicos incapazes de ir a campo para defender posição impopular. A exceção, honrosa e lúcida, foi José Serra — que não disputará reeleição e, parece, não mais concorrerá a cargos eletivos.

Na forma e no conteúdo, o Senado fiou a irresponsabilidade — não somente fiscal — de governos com vocação autoritária; de Bolsonaro ou de qualquer outro.

Todo mundo ali sabe — ou já deveria saber, não sendo burro ou cínico — como procede o bolsonarismo no poder, manobrando com o tempo e os limites legais, empurrando aos outros a tomada de decisão, jogando com a urgência da pobreza, manipulando pressões, forjando impasses, impondo fatos consumados.

Era possível — necessário — se antecipar. A crise dos combustíveis não surgiu agora, a três meses da eleição. A três meses da eleição surge apenas desespero. A crise não é consequência da agravante invasão da Ucrânia. Remonta — se pensarmos na história da bateção de pezinhos por Bolsonaro — ao começo de 2021, do que resultou a queda do presidente da Petrobras, o primeiro de uma sequência de três ceifados em menos de ano e meio.

O que se fez desde então, senão espuma e gambiarra? O que não se fez, para que se chegasse ao oportunismo de fabricar estado artificial de emergência?

Na ausência de governo, onde estava o Senado? Onde estava ativamente, que não na gestão do orçamento secreto, para articular medidas sustentáveis e circunstancias em benefício dos pobres? Só conseguiu se mobilizar sob a vara do Planalto, no improviso?

Naquela ocasião, com um 2021 inteiro adiante, não se feriria a Lei Eleitoral. E o ataque à Lei Eleitoral é grave. Que trilha ficará formalizada para que candidato à reeleição, já com a vantagem de estar sentado na cadeira de presidente, acione estados emergenciais e se alavanque?

Não será atentado a cláusulas pétreas da Constituição uma emenda que perverte a paridade de armas na peleja eleitoral? Estão os senadores preocupados em defender o sistema eleitoral, as urnas eletrônicas, das agressões de Bolsonaro? E que violência à saúde do processo eleitoral pode ser maior do que essa lançada por uma autorização legislativa a que o governo de turno, instituindo a desigualdade na derrama de créditos extraordinários, torre pelo menos R$ 60 bilhões daqui até o fim do ano?

Que estado de emergência é esse, defendido por um governo cujo Ministério da Economia apostou que não haveria segunda onda da peste, negligenciou a compra de vacinas e chancelou — em dezembro de 2020, ante, aí sim, calamidade orgânica inescapável — o fim do auxílio emergencial, que só voltaria, no susto, em abril de 2021?

Que estado de emergência é esse, se o Ministério do Banco Central — que só recentemente passou a exercer algo da independência conquistada há mais de ano — ignorava o enraizamento da inflação e lhe oferecia, na forma de juros de 2% (até março de 2021!), mais profundidade?

Esse é o estado de emergência — puxadinho de incompetentes, embusteiros e pilantras — que o Senado aprovou. Emergência para quem? Para quê?

O Senado aprovou a PEC Kamikaze de Paulo Guedes, o do estado de desespero. Quer dizer: a PEC, originária do Senado, que era kamikaze, suicida, no começo de 2022, a PEC do descalabro fiscal, isso de acordo com o ministro, mas que de repente se tornou solução para a criatividade liberal do resistente Guedes, aquele — injustiçado — que nos protege da alternativa pior. Qual seria?

O que seria pior do que um ministro da Economia que contrata mais inflação e mais juros — que destelhou o teto de gastos e aterrou a Lei de Responsabilidade Fiscal, o pai da PEC dos Precatórios, matriz do bundalelê — para dar competitividade artificial a um projeto autocrático de dilapidação da República como o de Bolsonaro? (Não estará mui distante daquele Plano Marshall de Braga Netto...)

Pior que um ministro da Economia cuja servidão dá nisso só um Senado cuja covardia anaboliza — maquiagem que os pobres pagarão em fome — a musculatura de um projeto autocrático de dilapidação da República como o de Bolsonaro.

O Globo

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