É espantoso como as analogias funcionam. Do lado de Putin, como do lado de Hitler, a mentira permanente. Do lado das democracias, uma confiança sôfrega na possibilidade da paz.
Por Paulo Tunhas
Li no outro dia que Putin, em conversa telefónica com Macron, quatro dias antes da invasão da Ucrânia, teria dito ao presidente francês que estava no ginásio e que, em vez de perder tempo com a conversa, preferia ir jogar hóquei sobre o gelo. A coisa lembrou-me algo que tinha lido no dia anterior. Pouco antes da invasão da Polónia, Hitler declarara ao embaixador inglês, Sir Neville Henderson, que era, pela sua própria natureza, um artista e que, depois da questão da Polónia ficar resolvida, tencionava sair da cena política e dedicar-se à pintura.
Percebemos o mundo através da detecção de semelhanças e diferenças. Como Montaigne, entre outros, notou, há gente mais apta a notar as semelhanças e gente mais disposta a assinalar as diferenças. Mas, como é óbvio, trata-se de uma questão de grau. A detecção de umas implica forçosamente a detecção das outras. Entre dois rostos, por exemplo. Ou entre duas ideias. E por aí adiante. A compreensão e o sentimento de inteligibilidade são o resultado da conjunção das duas detecções. Mas é claro que as podemos isolar abstractamente.
Por estes dias, ando às voltas com um problema que tem a ver com a detecção das semelhanças. Ou, se se preferir, com a descoberta de analogias, no sentido corrente da palavra – relação de semelhança entre duas entidades distintas –, sem ser preciso ir aos vários sentidos mais técnicos do conceito. O nosso pensamento, como se sabe, serve-se abundantemente delas. Tanto o pensamento quotidiano como o pensamento científico, o pensamento estético ou o pensamento ético-político. A eficácia das analogias depende da natureza, da estrutura, dos objectos do pensamento, mas, em todo o caso, elas são fundamentais para o próprio acto de pensar.
As virtudes do pensamento analógico não nos devem fazer esquecer os seus riscos. Se podem contribuir para a nossa compreensão das coisas, podem-nos igualmente induzir em erro. E isso não apenas nos casos em que elas são tiradas pelos cabelos, mas mesmo quando possuem alguma verosimilhança. Uma má analogia (mesmo que verosímil) pode ser a melhor maneira de não perceber a natureza do objecto que nos prende a atenção. Conduz-nos a falsas equivalências e desvia-nos do caminho certo para o entender. Isto é particularmente notório no caso da política e da história, onde, de forma mais selvagem ou mais prevenida, a tendência para o estabelecimento de analogias é fortíssima.
Centremo-nos na história. Aristóteles (e, depois, Schopenhauer repetiu-o) dizia que a história é menos filosófica do que a poesia, já que, ao contrário desta, não lida com o universal, mas com o particular. Os indivíduos históricos e os acontecimentos históricos são singulares. Isso produz um efeito limitador sobre o alcance das analogias: elas devem ser temperadas pela consciência da irredutibilidade do singular. As semelhanças estruturais são, por conseguinte, precárias. Mas será que isso quer dizer que elas são ilegítimas e incapazes de nos ajudar a compreender a natureza dos objectos que nos interessam? Não parece que seja assim. Mais: seria contra-intuitivo pensá-lo quando o apelo das semelhanças é poderoso. Muitas vezes, o presente é iluminado pelo passado – e, do mesmo modo, o passado é iluminado pelo presente. O presente torna-se mais inteligível quando comparado com o passado e o passado adquire uma vida suplementar através da experiência do presente.
Tomemos um exemplo. As comparações de Putin com Hitler são hoje em dia frequentes, como a comparação das reacções das democracias ao primeiro e ao segundo. Confesso que, mesmo com a prudência toda, a memória de leituras passadas e os dias que passei em companhia de Appeasing Hitler. Chamberlain, Churchill and the Road to War, de Tim Bouverie, publicado em 2019, fizeram-me dar comigo a concordar com a opinião comum e a surpreender-me com o número de analogias dotadas de verosimilhança. As coisas não são, evidentemente as mesmas. Mas as semelhanças fazem-nos pensar que as situações presentes e passadas se iluminam reciprocamente e suscitam uma compreensão mais nítida dos acontecimentos.
É espantoso como analogias entre os nossos tempos e aqueles que antecederam o início da Segunda Guerra Mundial funcionam. Refiro-me a analogias de carácter e de procedimentos dos participantes. Do lado de Putin, como do lado de Hitler, a mentira permanente. Do lado das democracias, nesta nossa última década como naquele tempo, uma confiança sôfrega na possibilidade da paz. Chamberlain não era a excepção: era a regra. Uma confiança que parecia renovada, e mesmo fortalecida, a cada nova violência nazi. Hitler, fizesse o que fizesse, era, no mínimo, “sincero”, “um homem em quem se podia confiar”. Os “homens culpados” – Guilty Men foi o título de um livro publicado em 1940, sob o pseudónimo de “Catão”, por três jornalistas, um liberal, outro conservador e outro, Michael Foot, futuro líder dos trabalhistas – tentaram apaziguar Hitler até às últimas possibilidades, e muito para lá delas. Quaisquer que sejam as revisões que a história tenha vindo e continue a fazer (o próprio Churchill, aquando da sua morte, fez um seu belo elogio), é difícil não ver Chamberlain à luz daquilo que, na altura, escreveu Dorothy Parker: “o primeiro primeiro-ministro da história a rastejar a quatrocentos quilómetros por hora”.
Tal como hoje Putin faz com a NATO, Hitler acusava a Inglaterra, em pleno período de “apaziguamento”, e com Chamberlain a continuar a recusar um rearmamento substancial, de visar a “aniquilação” da Alemanha. E, como hoje para Putin, para Hitler era a Alemanha a ameaçada e agredida – pelos polacos, por exemplo, antepassados dos “neo-nazis ucranianos”. Não fazia senão tentar libertar os falantes de alemão, onde quer que se encontrassem – nos Sudetas, entre outros lugares –, ameaçados de exterminação pelos outros povos. Lembra-vos alguma coisa? E, tal como hoje em relação a Putin, os jornais eram muitas vezes acusados de serem injustos para com Hitler.
Ler sobre aqueles tempos é como ter uma espécie de déjà vu ao contrário, em que o passado ecoa o presente, sem ilusão ou alucinação nenhumas. Falta-nos, é claro, Churchill e o We shall never surrender a seguir à retirada de Dunquerque, mas o destino de um caso tão excepcionalmente excepcional de retórica política é o de todos os modelos exemplares: ser inimitável. Kant diz isso a propósito da originalidade exemplar do génio e a coisa vale indiscutivelmente para Churchill: não há imitação possível, aí onde a imitação seria o mais desejável. Temos, no entanto, depois de anos de silêncio cego, algumas palavras acertadas. E acções também, que é o mais importante. E Zelensky não precisa de lembrar Tucídides. Tem o seu génio próprio.
A legitimidade das analogias históricas é, sem dúvida, condicionada. Mas há talvez um critério que as legitima: o haver iluminação recíproca do presente e do passado. A analogia entre o jogador de hóquei sobre o gelo – e os seus espectadores entusiastas – e o pintor – e os seus admiradores incondicionais – é uma boa analogia. A mentira de uma identidade alternativa parece ser comum a certa espécie de criminosos. Apesar de tudo, Estaline também gostava de se apresentar como linguista.
PS. Marcelo Rebelo de Sousa declarou a Ângela Silva, do Expresso, que assume, em relação ao Governo, o papel de “grilo falante”. Quer dizer: adopta a posição da consciência que é a da personagem do desenho animado de Walt Disney. Eu lembro-me bem – até tinha um disco de 45 rotações – dos longos discursos (em português do Brasil) do grilo. Mas talvez fosse conveniente que Marcelo lesse o escrito original de Carlo Collodi, que serviu de inspiração ao filme. É que, se bem me lembro, o grilo, mal tenta reprovar o comportamento de Pinóquio, é logo esborrachado por ele contra uma parede – para apenas aparecer, uma segunda vez, miraculosamente, tentando falar de novo e conhecendo outra vez um fim parecido. Imagino que tal funesto destino – não ser esborrachado, mas calado – seja particularmente incómodo para Marcelo, mas o Pinóquio era assim. E, já agora, uma pergunta quase metafísica: quem é, neste desenho animado em que vive e nos quer fazer viver, o Gepeto?
Observador (PT)