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quinta-feira, julho 07, 2022

Há algo de podre no reino da Dinamarca




Para os russos, evidentemente, os ucranianos são menos pessoas dos que os russos. Se calhar, nem são pessoas. Como os fetos e os embriões humanos. 

Por Miguel Alvim (foto)

Vai um enorme barulho mediático na Europa e nos EUA à volta do suposto retrocesso civilizacional configurado no facto de o Supremo Tribunal norte-americano ter tido a ousadia (na voz dos descontentes) de desconsiderar a prática voluntária e forçada ou induzida do aborto como um direito constitucionalmente reconhecido.

A pergunta certa é outra: como foi possível ter-se constitucionalizado um dia o direito a matar?

O verdadeiro alibi de uma (falsa) questão que tem sido colocada relativamente à vida intrauterina.

Um feto humano (chama-se feto o estágio de desenvolvimento com início após nove semanas de vida embrionária, quando já podem ser observados braços, pernas, olhos, nariz e boca, e vai até o fim da gestação) é um ser humano, uma pessoa, ou não?

E o estágio anterior, o embrião humano, o que é?

Para desculpar o indesculpável, parece que só o recém-nascido, ou seja, o feto humano depois do parto, é pessoa e pode ser constitucionalmente protegido (na medida de que o direito à vida é inviolável).

Nesse falsíssimo debate, como é óbvio, vale simplesmente a vontade e a lei do mais forte (dos/das que induzem o aborto).

O embrião e o feto não têm, evidentemente, nenhuma palavra a dizer.

E não é disso rigorosamente – a protecção dos mais fracos e indefesos – de que trata, ou deve tratar, em primeira linha uma constituição?

“Algo vai podre no reino da Dinamarca.” !

E no outro lado da linha da vida, a par desta controvérsia, no meio do caos das urgências obstétricas, do colapso anunciado do SNS e em pleno e mal disfarçado fiasco inflacionário, o parlamento português não tinha mais nada para debater (pela terceira vez) do que a morte medicamente induzida e assistida dos adultos?

Não tinha, pelos vistos.

E pergunta-se: quantas mais vidas humanas serão reivindicadas (aqui na fragilidade da sua idade e/ou da sua doença e/ou do seu abandono e/ou do seu descarte) pela violência intrínseca destes projectos?

Sob o pretexto falacioso de uma “decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja actual e reiterada, séria, livre e esclarecida”, pura e simplesmente mobiliza-se a morte.

Num caso e no outro, a morte dos mais fracos, indefesos e desprotegidos é autorizada e praticada ou ajudada por profissionais de saúde.

Tudo isto, forçosamente, tem de transportar-nos, moralmente, para outro cenário.

O cenário da guerra na Ucrânia, onde a morte, lamentável e criminosamente, a morte de milhares de inocentes, foi autorizada e é praticada e mobilizada, diariamente, pela vontade injustificada, injustificável, cega e tirânica dos dirigentes russos.

Também aí, na Ucrânia, como no direito internacional, pelos vistos, campeia a “lei do mais forte”. Porque sim.

Para os dirigentes russos, a Ucrânia nunca foi, não é, nem nunca poderá ser um país soberano e independente.

Para os russos, evidentemente, os ucranianos são menos pessoas dos que os russos.

Se calhar, nem são pessoas. Como os fetos e os embriões humanos.

Morrem sempre muitas pessoas, demasiadas pessoas, pela hipocrisia, cobardia e desonestidade de outras.

Quando lavamos as mãos dos problemas.

Quando cedemos nos princípios e nos valores.

Na representação repetida da tragédia humana: não querer ver o outro.

O passo absolutamente ao lado.

A expressão da doença humana mais perigosa, mais progressiva e parece hoje que incurável e irreversível, a pandemia moral.

Uma praga assustadoramente mortal.

Andam muito enganados os que supõem que o mal objectivo tem graus, que há males menores.

Não tem, não há.

Há o mal, ponto final.

Um só mal.

Da brutalidade abjecta da invasão da Ucrânia à discussão semântica sobre a vida.

Observador (PT)

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