Na disciplina de "Cidadania e Desenvolvimento" não há neutralidade, há intenção de desconstruir o ser binário e hetero-normativo, ao que parece uma «visão dicotômica sem qualquer fundamento científico».
Por Eugénia de Vasconcellos (foto)
«- Bem sei, mas tudo isso que você lhe ensinaria que não se deve fazer, por ser um pecado que ofende a Deus, já ele sabe que não se deve praticar, porque é indigno de um cavalheiro e de um homem de bem… (…) Ouça abade. Toda a diferença é essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo às caldeiras de Pêro Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do céu…»
Eça de Queiroz, in Os Maias
Portugal está ao rubro a partir de Famalicão, e mais uma vez a propósito da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, obrigatória desde o ano lectivo de 2018/2019, data em que dois irmãos, alunos do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco, foram proibidos pelos pais de frequentar a disciplina. Os pais objectaram a dois dos seus módulos: «Educação para a igualdade de género»; «Educação para a saúde e sexualidade». Ontem [05.07.22], no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão, o processo de promoção e protecção dos dois alunos viu confirmado o previsível adiamento da sessão para Setembro ou Outubro.
Foi pela mão do Ministério Público [MP] que este braço de ferro se tornou kafkiano.
Ainda que discorde da atitude dos pais, por muito que o conteúdo dos módulos seja pobre e de um dogmatismo incompreensível não só à ciência mas ao Estado de Direito, a verdade é que muito mais discordo do MP — para além de suspeitar que esta sua palhaçada nos vai sair muito cara pois serão os contribuintes portugueses a pagar o que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos acabar por decidir que é devido a esta família.
O MP pretende retirar a tutela destes dois irmãos aos pais e entregá-la à escola durante o período escolar para os «afastar da situação de perigo existencial». Isto para não falar da putativa «coerção emocional» que os pais exercerão sobre os filhos para além de serem exemplares «foras da lei». Este exercício de criatividade faz parte da argumentação do MP. Em 2022. E no país em que a disciplina de Religião e Moral se tornou opcional, e bem, em 1969. Repito: 1969.
Enquanto nos Estados Unidos se luta pela manutenção da separação entre o Estado e a igreja, uma preocupação que a composição ultra-conservadora do Supremo Tribunal impõe a quem é vigilante da democracia, em Portugal age-se duplamente à revelia da Constituição da República Portuguesa [CRP]. Isto é, retira-se aos pais os direitos e deveres que lhes cabem, e introduz-se nos curricula obrigatórios o que no seu artigo 43º a CRP proíbe: (…) O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.
Regredir, seja à direita ou à esquerda, é coleccionar perdas.
Esta não é uma situação distinta daquela que aqui apresentei. Não basta ao Estado de Direito a garantia da neutralidade religiosa. É precisa a garantia da neutralidade ideológica na academia. Na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento não há neutralidade, há a intenção, e ela é clara, de desconstruir o ser binário e hetero-normativo, ao que parece uma «visão dicotómica sem qualquer fundamento científico», e a forma como esteve ao serviço das estruturas de poder patriarcais. E as construções sociais num mantra beauvoiriano-butleriano exponencial e pseudo-científico. Isto é uma moldura ideológica sem qualquer contraditório – assim não há neutralidade, assim não há academia. A escola não deveria ser o lugar do dogma. O activismo per se não produz ciência. Nem quando reforça ideologias. Mas arrisca-se a produzir distopias, basta recordar a história.
Observador (PT)