Presidente atirou contra a democracia brasileira, mas a bala voltou-se contra ele mesmo
Por Míriam Leitão (foto)
O presidente Jair Bolsonaro fracassou totalmente na sua investida contra as urnas eletrônicas. Recebeu de volta uma saraivada de reações fortes vindas de todas as áreas. As diversas notas do Ministério Público deixaram o procurador-geral, Augusto Aras, isolado e com a obrigação de responder à notícia-crime feita pelos seus colegas. O comunicado do governo americano, elogiando o sistema eleitoral brasileiro, deu o tom do ceticismo com o qual as acusações sem provas de Bolsonaro foram recebidas nas embaixadas de países com governos democráticos. A nota conjunta de delegados e peritos da Polícia Federal tirou dele o argumento de que a PF tinha constatado fragilidades no sistema eleitoral. O comunicado dos servidores da Abin mostrou que ele ficou quase totalmente sozinho nesse “putsch” do Alvorada.
Bolsonaro atirou contra a democracia brasileira, mas a bala voltou-se contra ele mesmo. Mesmo com a força dessa resistência, o país continua vulnerável aos ataques e às maquinações de golpistas. Bolsonaro é golpista e se cercou de pessoas que ele domina totalmente e alguns estão em pontos estratégicos, como o general Paulo Sérgio Nogueira, ministro da Defesa. Na segunda-feira, 18, o presidente mentiu muito, mas mentiu com método. Pegou pequenos pedaços de verdade e construiu uma grande mentira.
Muitas instituições e órgãos do Estado trabalharam com o TSE ao longo da história do voto eletrônico para tornar todo o sistema mais robusto. Por isso, a reação de juízes eleitorais, de funcionários da Polícia Federal, de servidores da Abin foi tão eloquente. Eles se sentiram diretamente atingidos pela desconfiança que o presidente tentou lançar sobre a urna eletrônica. “Ao longo de toda a história da urna eletrônica, os profissionais de inteligência de Estado têm prestado apoio técnico especializado à Justiça Eleitoral, no fornecimento e implementação de sistemas e dispositivos criptográficos que contribuem para a autenticidade, confidencialidade e inviolabilidade dos programas e dados das urnas utilizadas no país”, disseram os servidores da Abin. Ficar em silêncio seria uma ofensa profissional a eles mesmos.
O mesmo aconteceu na Polícia Federal. Bolsonaro usou a parte da PF que ele controla para pegar um inquérito inconcluso e tirar dele ilações falsas. Mas em defesa até do seu brio profissional, os funcionários da PF reagiram. “A Polícia Federal, assim como diversas outras instituições renomadas, tem participado dos testes públicos de segurança promovidos pelo Tribunal Superior Eleitoral”, testemunharam três associações que reúnem delegados e peritos da Polícia Federal.
No Ministério Público, Augusto Aras está cada vez mais isolado. Os subprocuradores-gerais e subprocuradores-gerais da República chamaram de “legítimo e correto” o trabalho do TSE numa nota que abre falando no “inadiável dever de defesa do regime democrático”. Mais importante, faz uma lista dos crimes de responsabilidade previstos na lei de impeachment. Ao todo, 35 subprocuradores-gerais, da elite do Ministério Público, assinaram. Houve também a apresentação de uma notícia-crime pelos procuradores da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
No começo da terça-feira, o ministro Edson Fachin parecia um homem muito só para o tamanho da tarefa. Ao longo do dia foram se avolumando as notas, ações, denúncias, esclarecimentos e repúdios. Tudo somado parece pouco para a dimensão do risco que Bolsonaro representa para a democracia brasileira, porque ele tem um propósito muito definido e métodos para os quais nem sempre há vacina na nossa estrutura institucional. Além disso, ele cooptou os dois principais postos de defesa do país contra crimes cometidos pelo presidente: a presidência da Câmara dos Deputados e a Procuradoria-Geral da República.
Há ainda o risco militar. E esse é o ponto mais delicado. O silêncio de Aras e Lira é pura omissão, nos militares da ativa o silêncio é da natureza do trabalho. A grande dúvida do país neste momento é o que farão os militares da ativa. Bolsonaro soube levantar essa assombração sobre a democracia brasileira.
Eu previ que Bolsonaro fracassaria naquele encontro com os embaixadores e escrevi isso no blog no começo da segunda-feira, da mesma forma que escrevi, na terça, a lista dos crimes que ele cometeu. Bolsonaro não vai parar em seu explícito golpismo. A reação às suas manobras terá que ser cada mais forte.
O Globo