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sábado, junho 04, 2022

O Estado não é inimigo da cidadania




Sob a égide de Bolsonaro, ele está se transformando num inimigo feroz da igualdade num país marcado por múltiplas assimetrias desde a escravidão

Por Fernando Luiz Abrucio* (foto)

O Estado deve servir para impulsionar e proteger a cidadania. Essa máxima política foi construída ao longo de séculos na Europa e nos Estados Unidos e só muito recentemente foi incorporada à lógica política brasileira, a partir de 1988 com a chamada (não por acaso) Constituição cidadã. Nos últimos 30 anos essa ideia evoluiu no Brasil e, mesmo com percalços e lacunas, foi a principal bússola do debate público. E aqui entra mais um ineditismo negativo do governo Bolsonaro: sua visão sobre o papel do Estado o torna inimigo da cidadania democrática.

O conceito de cidadão supõe a busca da igualdade como norteadora de todas as dimensões públicas da vida social. É preciso garantir direitos básicos a todos e criar condições para que cada um possa usufruir o máximo possível de sua cidadania. Trata-se de uma ideia com múltiplos pais: republicanos, liberais, democratas, socialistas, social-democratas e ecologistas. Há consensos e nuances nas visões desses grupos, mas todos concordam que a reprodução cotidiana da desigualdade na esfera pública é um mal a ser combatido.

O bolsonarismo é inimigo da ideia de igualdade cidadã. Sua proposta é de manter a desigualdade prévia de cada um, a partir da qual, ilusoriamente, se poderia exercer uma liberdade quase irrestrita, com exceção dos limites impostos pelo exercício do poder do líder maior, o mito - isto é, o presidente da República.

Na via inversa, o igualitarismo democrático é uma construção contínua de direitos e capacidades, o que exige uma ação efetiva do Estado e, concomitantemente, o seu controle. Bolsonaro propõe exatamente o contrário: que o governo seja frágil nas políticas que criam oportunidades e a possibilidade do exercício da cidadania, ao passo que o aparato estatal deve ser forte na garantia das desigualdades prévias e no exercício do poder repressivo, tornando-o incontrolável pela sociedade.

Vários acontecimentos recentes, derivados de ações bolsonaristas ou impulsionadas por seu ideário difundido nos últimos anos, mostraram como o Estado, sob a égide de Bolsonaro, está se transformando num inimigo feroz da igualdade num país marcado por múltiplas assimetrias desde a escravidão. Pode-se dividir tais episódios em três elementos estratégicos do papel do Estado frente à cidadania.

O primeiro é sua capacidade de usar os direitos para expandir capacidades de indivíduos e comunidades. O segundo é sua função de garantir a segurança e a liberdade de todos, indiscriminadamente, para que os cidadãos não sejam atingidos nem pela guerra de todos contra todos - a anomia social - e tampouco pelo poder desmesurado das forças estatais. Por fim, Estado democrático é aquele que contém instrumentos de controle sobre si, sejam externos, advindos da sociedade, sejam internos, advindos das instituições.

O igualitarismo não é uma obra pronta em nenhum país do mundo. Em todos, é preciso que haja direitos e que estes sejam alimentados por políticas públicas capazes de criar capacidades para exercer a autonomia individual e a vida comunitária.

Quando o governo Bolsonaro aprova na Câmara federal uma lei muito ampla de homeschooling, que se torna uma possibilidade para todos, e não uma situação muito excepcional para aqueles que teriam dificuldades de saúde ou de locomoção para usufruírem de um ano escolar regular, o que está sendo feito é reduzir a efetividade do Estado em construir oportunidades para os mais pobres e vulneráveis. Ou seja, para a grande maioria dos 48 milhões de estudantes da educação básica, os mesmos que o MEC bolsonarista abandonou na pandemia de covid-19.

O projeto de homeschooling bolsonarista, para além dos moralismos hipócritas que o sustentam, tem como principal consequência a perpetuação das desigualdades no Brasil. Quantos mais alunos pobres puderem fazer educação domiciliar, e certamente serão incentivados pelos bolsonaristas e algumas lideranças evangélicas que vão enriquecer vendendo sistemas de ensino feitos por semialfabetizados, mais terão reduzidas suas possibilidades de ascensão social.

Mais do que isso: ao não criar as condições para que todos possam ter escolas públicas de qualidade, que poderiam ser substituídas por um simulacro de ensino, Bolsonaro não só se vinga da ciência e dos que pensam autonomamente, como também embarga a chance daqueles que não têm acesso ao saber e ideias diferentes de mundo. Assim, o homeschooling causará um duplo empobrecimento: da renda futura dessas pessoas e do universo cultural ao qual terão acesso.

Cabe recordar que, para os gregos, a cidadania era uma forma de ampliar a capacidade de cada um e da comunidade sonharem. O bolsonarismo quer alimentar a ignorância para que todos se acomodem no status quo vigente, em suas misérias cotidianas, à espera de um salvador secular ou religioso, sem romper com as diferenças sociais históricas que determinam, no fundo, como o Estado pode abordar pessoas na favela ou no Leblon.

Se o governo Bolsonaro quisesse ampliar as capacidades de todos serem cidadãos, teria priorizado a educação, cujo ministério teve um recorde de ministros e que prefere servir ao clientelismo do orçamento secreto. Mais especificamente, se o bolsonarismo quisesse ter um modelo educacional para mudar a situação das pessoas mais pobres e de seus descendentes, estaria investindo em massa em políticas de primeira infância. A literatura internacional está repleta de evidências científicas interdisciplinares de que programas públicos de apoio e intervenção intersetorial junto aos bebês e crianças até os seis anos de idade constituem o motor mais potente de mudança social.

O presidente deveria pegar os R$ 35 bilhões das emendas parlamentares, ou pelo menos os quase R$ 20 bilhões do dinheiro federal que hoje compram de forma secreta tratores e caminhões de lixo para investir no futuro do país. Vale ressaltar que as políticas de primeira infância são feitas em diálogo e parceria com as famílias, mas dependem de uma intervenção constante do Estado em todos os momentos do desenvolvimento da criança - aliás, começando já na gravidez da mãe. Não será trancando as famílias em suas próprias casas, assombradas por líderes demagógicos, que os pobres verão seus filhos numa situação melhor no futuro.

O problema para o bolsonarismo é que desenvolver políticas públicas complexas significa investir em especialistas e servidores públicos que se movem pela ciência e pelo longo prazo. Não é por outra razão que Bolsonaro politizou gigantescamente a administração pública federal, enchendo-a de grupos que o obedecem fielmente, como milhares de apaniguados incompetentes, além de militares ocupando postos civis para os quais não têm preparação.

Para usar o Estado no desenvolvimento da cidadania, ele tem de ser o oposto do que quer o atual presidente: competente, autônomo frente a desmandos e controlável pela sociedade.

O modelo estatal bolsonarista tem uma segunda frente contra a cidadania: ele não busca garantir os direitos iguais dos cidadãos em relação à lei e sua aplicação pelas forças de segurança. O caso de Genivaldo Santos, torturado e morto na semana passada pela Polícia Rodoviária Federal em Sergipe, revela o modelo estatal que Bolsonaro defende.

A vítima foi tratada como culpado desde o início, não lhe sobrando nenhum momento de defesa da sua condição de cidadão. Sua posição social explica a postura dos policiais: negro, pobre e com problemas de saúde mental, Genivaldo seria, para o bolsonarismo, um desigual por natureza e assim deverá ser tratado pelo aparato estatal, assim como indígenas, moradores de rua, pretos, travestis e todos os que não se encaixam no perfil do “homem de bem” bolsonarista.

No fundo, Bolsonaro defende um Leviatã às avessas. O Estado representado pelo monstro com vários braços proposto por Thomas Hobbes tinha como objetivo resguardar a vida e a segurança de todos, sem exceção. Isso seria feito por contrato com participação integral da sociedade, que só aceitava repassar tanto poder à soberania estatal porque ela seria justa e equânime. O bolsonarismo quer ter o monstro com seu poder bélico em suas mãos, mas para enfraquecer a ideia de igualdade, e não para garanti-la.

O último elemento da cidadania democrática refutado pelo bolsonarismo é a ideia de accountability, isto é, de controle público. Para que haja uma sociedade com cidadãos autônomos e respeitados, é preciso, a um só tempo, ampliar e demarcar bem o poder estatal. É trágico como Bolsonaro não quer ampliar o Estado para construir oportunidades e capacidades a todos, mas quer um aparato estatal autocrático e sem fiscalização, quer seja da sociedade, quer seja das instituições. Quando o atual presidente busca enfraquecer o STF ou a Federação, ele se torna um autocrata inimigo da cidadania.

O sonho bolsonarista é duplo. De um lado, uma desresponsabilização do Estado com os mais pobres e sua desregulamentação frente a garimpeiros ilegais, milicianos e motoristas brancos da classe média para cima que andam em suas motos sem capacetes. De outro, o Estado forte será destinado à repressão dos eternos condenados à desigualdade, como também poderá ser usado para ameaçar as instituições que tentam limitar o poder presidencial. Bolsonaro quer se reeleger para que a cidadania inventada pela Constituição de 1988 tenha sua morte decretada no Brasil.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

Valor Econômico

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