Afinal, o que não fazer da Petrobras? Num momento em que a empresa sofre diversos tipos de ataque, tornou-se urgente responder a essa pergunta.
Por Carlos Graieb (foto)
Nos últimos vinte anos, a Petrobras foi tema importante de todas as eleições presidenciais brasileiras. De 2002 a 2010, ela serviu de símbolo para dois modelos de desenvolvimento econômico — um conduzido pelo Estado; o outro, com papel preponderante da iniciativa privada. Em 2014 e 2018, a discussão girou em torno da corrupção. O petrolão havia sido descoberto: um esquema criminoso gigantesco, em que partidos políticos e empreiteiras trabalhavam juntos para saquear a companhia.
Agora, em 2022, impera a confusão. A guerra na Ucrânia fez o preço do petróleo disparar no mundo todo, inclusive no Brasil, onde a Petrobras adota há anos a política de repassar aos consumidores os aumentos no mercado internacional. Petróleo mais caro, além de castigar quem abastece o veículo, afeta diversas cadeias de produção e consumo, o que resulta em inflação — o pesadelo de qualquer presidente em busca de um segundo mandato. Sob estresse, Jair Bolsonaro fez trocas sucessivas na direção da Petrobras, passou a tratá-la como inimiga do povo, pôs sobre a mesa um mal-ajambrado plano-relâmpago de privatização e pediu a instauração de uma CPI sobre o preço dos combustíveis. Enquanto isso, seus aliados do Centrão tramam uma mudança na Lei das Estatais que visa a facilitar a ingerência dos políticos na companhia. Nessa empreitada, eles contam com o apoio inusitado do PT, sob cujos governos ocorreu o assalto à Petrobras. Sim, está confuso. Por isso, antes mesmo do começo oficial das campanhas políticas, tornou-se urgente responder: afinal de contas, o que não fazer da Petrobras?
Os efeitos da escalada do petróleo são sentidos no planeta inteiro. O mecanismo mais empregado para suavizá-los tem sido o corte de impostos. Chile, Espanha e Coreia do Sul são três exemplos de países que, muito diferentes entre si, adotaram essa mesma solução. Nesta quarta, 22, o presidente americano Joe Biden pediu ao Congresso que suspenda o imposto federal sobre a gasolina por três meses. Ele solicitou aos estados americanos que também suspendam taxas sobre o gás e busquem caminhos próprios para reduzir o aperto sobre o consumidor. Além das medidas tributárias, subsídios diretos, mais ou menos focalizados, vêm sendo empregados em todos os continentes. O governo espanhol se comprometeu a transferir 16 bilhões de euros para as empresas petrolíferas até o dia 30 de junho, no intuito de baixar em 20 centavos o preço do litro na bomba de combustível. Portugal criou um voucher para quem vai encher o tanque, enquanto a Coreia do Sul decidiu subsidiar o consumo para caminhoneiros e motoristas de taxi.
O governo Bolsonaro usou um pouco de cada um desses ingredientes. Cortou os impostos federais sobre combustíveis e também criou vouchers específicos para caminhoneiros e para ajudar famílias de menor renda a comprar gás de cozinha. Se tivesse se concentrado nessas receitas, o governo brasileiro não poderia ser acusado de forma nenhuma de ter falhado durante a crise. Num ano de eleição, contudo, não bastou fazer a coisa certa. O medo de ser punido nas urnas acabou fazendo com que ele enveredasse por caminhos tortos, tentando transferir “culpas” para os governadores e a Petrobras.
No caso dos impostos, Bolsonaro pressionou o Congresso e os estados a fixar o teto do ICMS para os combustíveis na faixa de 17% a 18%. É parecido com o que está acontecendo nos Estados Unidos, mas com duas diferenças. O presidente brasileiro não pediu colaboração aos estados; em vez disso, tentou transformá-los em vilões dos preços altos. Ele também patrocinou uma mudança estrutural no ICMS para lidar com um problema conjuntural, sem que exista clareza sobre os efeitos dessa medida sobre contas estaduais, em geral, esfarrapadas.
O bullying contra a Petrobras é ainda mais grave. Além de se apoiar em argumentos falsos, todo o discurso de Bolsonaro e de seus aliados do Centrão — Arthur Lira em particular — manda às favas a preocupação com a segurança jurídica, fundamental para um país que quer ser visto como um bom destino para investimentos.
Bolsonaro se acostumou a dizer que os lucros da Petrobras são exorbitantes e representam um “estupro“. Em outra era, seu ministro da Economia Paulo Guedes talvez entrasse de sola nessa discussão, citando a frase de um de seus gurus, o ganhador do Prêmio Nobel Milton Friedman: “O único propósito de uma empresa é gerar lucro para os acionistas”. Mas deixemos Paulo Guedes para lá. A premissa de Bolsonaro está errada. “Os lucros da Petrobras não decorrem da venda de combustíveis no mercado nacional, mas principalmente da produção e exportação de petróleo”, diz Alexandre Szklo, professor de planejamento energético da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Também não é verdade que os lucros sejam mais altos que os de outras grandes petroleiras. A empresa que obteve os melhores resultados no primeiro trimestre de 2022 foi a Saudi Aramco, da Arábia Saudita. O valor, de 39,4 bilhões de dólares, é mais de quatro vezes o da Petrobras, no mesmo período: 8,8 bilhões de dólares. A norueguesa Equinor também se saiu melhor e teve um lucro de 17,9 bilhões de dólares. Petroleiras de tamanho semelhante ao da Petrobras e igualmente focadas em extração e exportação de petróleo, como a Shell e a Exxon, tiveram lucros de 9,1 bilhões e 8,8 bilhões de dólares, respectivamente. “São números da mesma ordem de grandeza”, diz Szklo.
Outro argumento falacioso é que a distribuição de dividendos da Petrobras beneficia estrangeiros que detêm ações da empresa, em detrimento dos brasileiros. Como a União é a maior acionista da Petrobras, ela é quem fica com a parte do leão. “Quanto mais dividendos são distribuídos, mais o cofre da União engorda. O excelente resultado fiscal do governo neste ano, bem melhor que o esperado, se deve em grande parte à Petrobras”, diz o economista Wagner Varejão, sócio da Valor Investimentos. “O governo tem usado esse dinheiro para abater a dívida pública, mas ele poderia ter outras destinações, como a saúde, a educação ou programas sociais. É muito melhor pensar dessa forma nos recursos que vêm da Petrobras do que imaginar esquemas para controlar os preços da gasolina reduzindo os lucros ou a distribuição de resultados da empresa. Controle de preços beneficia um monte de gente que não precisa de ajuda, como donos de carros de luxo.”
Existe um paralelo óbvio entre a situação de Bolsonaro e a de Dilma Rousseff, que manipulou os preços dos combustíveis e da energia elétrica em 2014, em busca da reeleição. Para infelicidade de Bolsonaro, contudo, uma mudança crucial teve lugar entre 2014 e 2022. Os descalabros desvendados pela Lava Jato ensejaram tanto a edição da Lei das Estatais, em 2016, quanto alterações nos estatutos da Petrobras. As novas regras não proibiram, mas dificultaram bastante as interferências do Estado na companhia. Diretores e conselheiros que não puserem os interesses da Petrobras em primeiro lugar estão sujeitos a responder com seu próprio patrimônio por perdas que acarretarem, o que os torna infinitamente mais resistentes diante de pressões externas. Isso explica por que Bolsonaro, apesar de ter trocado o presidente da petroleira três vezes em poucos meses, não conseguiu bloquear os reajustes de preços. Em segundo lugar, governos que optarem pela intervenção terão de suportar um ônus: ressarcir a companhia, caso lhe causem prejuízos. Isso explica por que Bolsonaro, ao contrário de Dilma, não partiu de uma vez para a farra.
“Os últimos acontecimentos mostram que a Petrobras criou um sistema de governança muito forte, à prova de ingerências. Não tem político que consiga meter a mão lá dentro“, diz o professor de economia da Universidade de São Paulo (USP) e ex-presidente da Eletropaulo Paulo Feldman. A blindagem da Petrobras tem se mostrado particularmente irritante para Arthur Lira. Na semana passada, a empresa anunciou um aumento logo depois que o corte do ICMS foi aprovado no Congresso, anulando os ganhos dessa medida. Isso enfureceu o presidente da Câmara, que chamou a Petrobras de “república rebelde em guerra com o Brasil”. A ideia de que a petroleira deveria se curvar à conveniência dos políticos ou a um hipotético “interesse social”, contudo, esbarra na questão da segurança jurídica. Se hoje a Petrobras tem 700.000 acionistas de todas as partes do mundo, é porque eles acreditam que as regras que protegem o seu investimento serão respeitadas.
Contra a blindagem da Petrobras, há várias reações em curso. Bolsonaro, de um lado, incentiva a criação de uma CPI para investigar os diretores da empresa e, de outro, se mostra simpático ao plano de uma privatização-relâmpago: em vez de um longo processo de estudo estratégico e valoração de ativos, uma mera conversão de ações sem direito a voto em ações ordinárias. Como já disse o presidente, se a empresa lhe dá dor de cabeça, é melhor vendê-la.
A aposta do Centrão é outra. Seus condestáveis rejeitam a ideia da CPI e tentam convencer Bolsonaro a editar uma medida provisória para enquadrar a empresa. Colega de Arthur Lira no PP, o ministro Ciro Nogueira põe a coisa em termos singelos: o objetivo é “ampliar a sinergia” entre o governo e a Petrobras. Trata-se, obviamente, de um eufemismo. O propósito é facilitar a ingerência nos assuntos da petroleira e franquear novamente aos políticos suas diretorias, como nos tempos felizes que antecederam a Lava Jato. O PT vai de mãos dadas com o Centrão nessa empreitada. O partido tem defendido a tese de que, por meio do diálogo, Lula conseguiria aquilo que Bolsonaro não conseguiu: convencer a Petrobras a abandonar sua política de paridade com os preços internacionais dos combustíveis, sem ônus e com um sorriso nos lábios. Mas o apoio à medida provisória mostra que os próprios petistas não botam fé nessa hipótese. Nesta quarta-feira, 22, a presidente do PT Gleisi Hoffmann disse que o partido votaria a favor de uma modificação na Lei das Estatais que devolvesse ao governo o poder de comandar a Petrobras. “Um governo eleito pelo povo tem de dar a linha de atuação das estatais”, disse Gleisi. Segundo ela, impedir que isso aconteça é “criminalizar a politica”.
Excetuada a CPI, que não seria mais do que teatro político, os outros planos envolvem mudanças profundas, que não deveriam sequer ser cogitadas a pouco mais de três meses das eleições. Se Bolsonaro não idealizou um plano de privatização em três anos e meio de governo, perdeu o bonde. Deve deixar a ideia para um eventual segundo mandato.
“O fast-track no meio de um processo eleitoral nos parece inviável jurídica e politicamente”, diz o advogado Leonardo Pietro Antonelli, ex-integrante do conselho administrativo da Petrobras e atual representante de acionistas minoritários. “A Petrobras é uma paixão nacional. E com tantos interesses divergentes, como aprovar num prazo de seis meses a venda da maior empresa da América Latina, um gigante que pode faturar meio trilhão de reais por ano? A prudência é um imperativo quando se trata da joia da coroa.”
Da mesma forma, o descontrole no preço dos combustíveis é temporário e não pode servir de pretexto para virar de ponta cabeça, permanentemente, a governança da Petrobras. Isso só interessa a políticos que desejam ter os recursos da empresa à sua disposição.
É um fato conhecido que países ricos em petróleo com frequência apresentam níveis ruins de crescimento econômico, desenvolvimento humano e democracia. É a chamada maldição do petróleo. Dono do pré-sal, uma das maiores reservas de combustível fóssil do mundo, o Brasil não chega a ser um caso típico desse infortúnio. O país conheceu de perto a corrupção que costuma vicejar nas empresas e governos que nadam em petrodólares, mas não se pode afirmar que suas mazelas decorrem de uma dependência exagerada desse recurso natural, como acontece, por exemplo, na Venezuela. O Brasil tem, no entanto, sua versão peculiar da maldição do petróleo. Ela se manifesta de quatro em quatro anos, há pelo menos duas décadas, quando velhos debates sobre a Petrobras são reciclados de maneira pobre e superficial. É improvável que neste ano se dê um passo adiante. Mas é preciso impedir, ao menos, que as soluções apressadas e interesseiras que estão em gestação em Brasília passem a valer. A empresa não pode ser jogada no fundo do poço eleitoral.
Revista Crusoé