Ao distribuir dinheiro a caminhoneiros e famílias pobres, sem planejamento e a menos de 100 dias das eleições, Bolsonaro dá argumentos para nulidade de sua candidatura
O presidente Jair Bolsonaro aparentemente não está satisfeito somente em legar ao País a destruição de políticas públicas consolidadas. O Executivo pretende agora ignorar as restrições legais e, às vésperas das eleições, criar um novo programa para ajudar caminhoneiros autônomos com o pagamento mensal de mil reais para a compra de diesel. O fato de não haver uma base de dados atualizada sobre o setor ou qualquer estudo sobre as dificuldades dos motoristas não será um empecilho. Como mostrou o Estadão, quem constar de um cadastro genérico e desatualizado da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) estará apto a receber o benefício. Ou seja, não há preocupação nem com o foco do programa nem com eventuais fraudes. Para Bolsonaro, só interessa o potencial eleitoral da distribuição de dinheiro. A tentativa de compra de votos é tão explícita que será difícil, para a Justiça Eleitoral, encontrar argumentos para ignorar o crime que está para ser cometido.
Criado por lei em 2007 para servir como referência da estrutura logística do País, o Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTRC) inclui caminhoneiros, mas também motoristas de furgões e de vans. Como a inserção de dados não exige revalidação, basta fazer o cadastro pela internet, o que pode ser realizado tanto pelo profissional quanto pelo sindicato que o representa. De acordo com a ANTT, haveria 872.320 transportadores autônomos de cargas no País em 2017, um cenário que sofreu mudanças drásticas após a greve de 2018, quando empresas passaram a operar com frota própria e a contratar transportadoras que formalizam motoristas como empregados.
A frouxidão do controle sobre os beneficiários de programas sociais é um padrão do governo Bolsonaro. Começou com o Auxílio Emergencial, quando o ministro Paulo Guedes alegou ter descoberto milhões de “invisíveis” na pandemia de covid-19 em 2020, ignorando as informações reunidas em mais de 20 anos de existência do Cadastro Único dos programas sociais. À época, a União aceitou pagar R$ 600 para cada um que passasse pelos parcos controles do programa. Ao todo, 67,9 milhões de pessoas, quase um terço da população, foram beneficiadas – quem precisava e quem não precisava. Sabe-se que pelo menos 3,02 milhões de pessoas receberam indevidamente R$ 1,072 bilhão em recursos públicos, segundo relatório da Controladoria-Geral da União (CGU).
Foi no período de vigência do Auxílio Emergencial que Bolsonaro registrou seus melhores índices de aprovação. Logo, no raciocínio oportunista que predomina hoje no Palácio do Planalto, a única maneira de impulsionar as chances eleitorais de Bolsonaro seria injetar “dinheiro na veia do povo”, como classificou em 2020, a propósito do Auxílio Emergencial, o ministro da Economia, Paulo Guedes, outrora liberal e hoje completamente alinhado ao populismo ordinário do presidente.
Se o foco do governo estivesse no resgate das famílias mais vulneráveis, como deveria ser, o correto seria investir para zerar a fila de beneficiários do Auxílio Brasil, estimada em 2,78 milhões de famílias, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), e diminuir o longo tempo de espera para agendar um atendimento nos Centros de Referência da Assistência Social (Cras). Combater a fome será tarefa impossível sem socorrer os que mais precisam.
Mas a necropolítica bolsonarista não se importa se há brasileiros sem ter o que comer. Hoje, como sempre, Bolsonaro só usa a poderosa caneta presidencial para viabilizar o pagamento do “bolsa-eleição”. Com esse objetivo, o governo cogita até inventar um “estado de emergência” para liberar gastos em ano eleitoral e fora do teto fiscal, algo escandalosamente ilegal. Ou seja, Bolsonaro dá de bandeja argumentos para a nulidade de sua candidatura, mas não parece preocupado com isso, pois talvez aposte na impunidade. Assim, roga-se que as autoridades eleitorais e judiciais do País não fiquem inertes diante de tal afronta às leis vigentes, especialmente as que determinam igualdade de condições entre os candidatos e as que impõem limites cristalinos aos gastos públicos.
O Estado de São Paulo