Publicado em 29 de junho de 2022 por Tribuna da Internet
Flavio Gordon
Gazeta do Povo
Os gregos criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais indicativos de algo mau ou extraordinário no estatuto moral de uma pessoa. Impressos na pele mediante cortes ou queimaduras, os sinais apontavam o estigmatizado como uma pessoa de má reputação – escravo, criminoso ou traidor. O portador do estigma, ritualmente poluído, era assim fisicamente marcado para que os demais membros da comunidade fossem capazes de evitar a sua presença contagiosa.
Originalmente relativa a esses sinais corporais exteriores, infligidos ou inatos (a exemplo de deformações físicas e defeitos congênitos), a noção de estigma foi progressivamente ampliada para denotar falhas individuais relativas a hábitos, vícios, gostos e comportamentos particulares. Mais tarde, passou a abranger também culpas coletivas, associadas ao pertencimento a determinada nação, religião, “raça”, família, tribo ou corporação de ofício.
IDENTIDADE DETERIORADA – Num livro clássico, o sociólogo canadense Erving Goffman definiu estigma como um símbolo da “identidade deteriorada” de indivíduos ou grupos objeto de um processo de desumanização.
O estigma torna-se particularmente devastador ao se transformar naquilo que Goffman chamou de “status dominante”, quando passa a englobar toda a identidade social de um indivíduo ou grupo, independentemente de quaisquer outros de seus traços distintivos. Nos casos extremos, o processo de estigmatização pode culminar no assassinato em massa, como ocorreu nas situações emblemáticas do Holocausto e do genocídio ruandês.
Como se sabe, o extermínio nazista dos judeus foi precedido por uma vasta campanha de desumanização antissemita veiculada pelo Ministério da Propaganda de Goebbels, que controlava a imprensa e as editoras, representando as futuras vítimas do massacre em termos tais como “vermes”, “ratos” e “porcos”.
ALEMANHA E RUANDA – No livro A Linguagem do Terceiro Reich, de 1947, o filólogo judeu Victor Klemperer, na condição simultânea de estudioso e vítima, registrou a corrupção da língua alemã promovida pelo regime nazista: as palavras podiam ser “como minúsculas doses de arsênico” que, engolidas de maneira despercebida, aparentavam ser inofensivas até que, tempos depois, o efeito do veneno se fizesse sentir. Na Alemanha, a dessensibilização moral provocada pela linguagem nazista foi a antessala do genocídio.
No caso de Ruanda, é bem conhecido o papel desempenhado por veículos de imprensa como a Radio Télévision Libre des Mille Collines no fomento à carnificina, mediante a estigmatização reiterada dos tutsis, sistematicamente desumanizados e apelidados de “baratas”.
Em Ruanda, a selvageria da matança começou na selvageria da linguagem radiofônica. Naquele pequeno país africano, entre abril e julho de 1994, aproximadamente 800 mil tutsis foram retalhados até a morte por seus vizinhos hutus.
ESTIGMAÇÃO NO BRASIL – Por aqui, não existe obviamente algo similar a esses casos extremos de violência política. No entanto, na esfera da linguagem, já se observa há algum tempo um mecanismo cada vez mais virulento de estigmatização, processo que tem como alvos o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores.
São recorrentes os exemplos de linguagem estigmatizadora e desumanizadora, utilizada com cada vez menos cerimônia. Um ex-jogador de futebol chama o governo de “covarde, mentiroso, perverso e muito cruel”. Um comediante define o presidente como “um cara abjeto, que não tem humanidade… Isso não é gente, é rato, é verme”. Uma atriz manifesta livremente seu desejo de esfregar a cara de Bolsonaro no asfalto.
Um ministro do Supremo chama os bolsonaristas de “imbecis”. Um outro os acusa de integrar “guetos pré-iluministas”. Um terceiro reproduz a linguagem militante que caracteriza Bolsonaro como genocida.
TUDO É PERMITIDO – Fulano é bolsonarista, logo, contra ele tudo é permitido – eis o silogismo consagrado nas redações, nos estúdios, nos palcos e nos tribunais do Brasil de nossos dias
Na grande imprensa, o estigma bolsonarista – estampado em pessoas como o cantor Sérgio Reis, a médica Nise Yamaguchi, o empresário Luciano Hang, o jornalista Allan dos Santos e de tantos outros – serve para definir os alvos da perseguição estatal e, em seguida, para legitimar essa perseguição.
Vitimados por uma lógica tipicamente stalinista – “deem-me um nome que eu arrumo um caso” –, os estigmatizados são previamente culpados do crime de… bolsonarismo. Sim, um jornalista chegou a descrever uma participante do BBB como “suspeita de bolsonarismo”.
JÁ PRODUZ EFEITO – Se a selvagem retórica antibolsonarista da imprensa, de personalidades do show business, de parlamentares e de ministros da suprema corte ainda não desaguou em violência física em larga escala, o fato é que ela já produz efeitos em termos de uma identidade deteriorada e perda de status social, uma vez que, no âmbito de inquéritos inconstitucionais que lembram os famigerados Processos de Moscou, os assim chamados “bolsonaristas” viraram alvo de uma série de perseguições político-jurídicas e sofrem toda sorte de violação a direitos individuais elementares.
Na realidade social criada por essa espécie de adelismo linguístico, tudo se passa como se o estigma bolsonarista indicasse a presença de uma impureza ou pecado irredimível, bastando para que o seu portador seja ostracizado, tratado como pária, e privado das garantias formalmente previstas num estado de direito.
Fulano é bolsonarista, logo, contra ele tudo é permitido – eis, enfim, o silogismo consagrado nas redações, nos estúdios, nos palcos e nos tribunais do Brasil de nossos dias.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Merece muita reflexão este artigo, enviado por Mário Assis Causanilhas. Resumimos um pouco, porque o texto estava muito extenso. Concordamos que a estigmatização e o radicalismo político não interessam a ninguém. Mas gostaríamos de lembrar que o próprio Bolsonaro e seus apoiadores incentivam essa radicalização, ao considerar como “comunistas” todos os adversários políticos e também ao investir contra o estado laico. Assim, é preciso que todos evitem o extremismo e que todos façam o “mea culpa”, pedido de perdão na missa da Igreja Católica, com a prece “Confiteor” (“Eu confesso”). Porque, no caso, todos estamos errados. (C.N.)