Muitos imigrantes eram russos, fugindo do Exército Vermelho
Mathias Erdtmann
Com toda a situação na Ucrânia, não posso deixar de transcrever a história da minha avó, como me foi passada, com todas as imprecisões e defeitos históricos, aos quais acrescento mais algumas incorreções. Mas no geral, “só sei que foi assim” como dizia o genial Ariano Suassuna.
Em 1881 nascia em Saratov, às margens do Rio Volga, Mathias Schaf. Como mais tarde aprenderia, meu bisavô não era russo. Voltando um século na história, entre 1773 e 1778, os Schaf deixavam pela última vez de seu humilde lar, onde o Rio Queich deságua no Reno, respondendo a um pedido da pomerana czarina Catarina, a alemã que se tornou rainha da Rússia com o assassinato de seu marido.
Eles deixavam seu país para colonizar a Rússia, em troca de terras baratas, liberdade religiosa (eram católicos que não haveriam de adotar a ortodoxia russa) e ausência de serviço militar (eram, novamente, muito católicos). Um pequeno asterisco que não atentaram nas regras: não seriam cidadãos russos. Não podiam comprar novas terras ou expandir suas propriedades com o crescimento da família.
NOVAS MIGRAÇÕES – Receberam suas terras na margem do Volga. Quando Mathias Schaf nasceu, 100 anos depois, essas terras já não eram suficientes. Mais uma vez, migraram, para Kerson, na Criméia russa, onde, possivelmente, teriam terras nuas para novamente desenvolver.
Lá Mathias casara e em 1915, nascia, perto de Odessa (atual Ucrânia) Angelina Schaf, minha avó. Após 5 gerações, ela tinha todos os traços russos, mas também não seria considerada russa.
Como era previsível, após o desenvolvimento das lavouras, com o crescimento da família, tiveram que migrar novamente.
Mathias foi com sua família para 4.500 km de distância, para uma região próxima a Novosibirsk, um pouco a leste da fronteira do atual Casaquistão. Lá cultivaram terra nua por alguns anos, e a tornaram fértil.
FICARAM À MÍNGUA – Com a revolução vermelha, toda a promessa dos czares se desfez. O exército vermelho recolheu, ano após ano, a colheita de trigo, deixando os “alemães” à míngua.
Os Schafs cresceram, trabalharam, morreram no território russo por 150 anos, transformando a terra infértil em terra agrária, para em seguida entregar aos Russos. Agora, no entanto, era definitivo. Estrangeiros mal vistos, teriam que abandonar o país e entregar todas suas parcas propriedades sem nada receber, para que russos “de verdade” pudessem morar em suas casas.
A família que não conseguisse equipar cada casa com dois jogos de cama, três panelas e utensílios de cozinha, seria condenado a cinco anos de trabalhos forçados na Sibéria, por não fornecer moradia adequado aos russos.
O PÃO NOSSO… – A travessia do país continental, com enormes riscos, só foi possível agarrando-se na fé e na caridade. O Pai Nosso do Cristão na guerra é muito mais literal do que nas igrejas. “Pão nosso de cada dia”. “Assim como nós perdoamos aqueles que nos tem ofendido”.
Sem descrever os detalhes das penúrias e perdas do caminho, digo que vários dos Schaf conseguiram alcançar um campo de refugiados na Alemanha, incluindo a jovem Angelina. De lá, conseguiram um navio para o Brasil, e a Companhia Territorial Sul Brasil alocou a eles uma pequena gleba no oeste catarinense.
A situação de receber uma terra improdutiva para desenvolver não era novidade. A novidade é que agora os Schaf eram brasileiros. Pela primeira vez em mais de 150 anos, tinham cidadania.
TRABALHO INSANO – A terra, muito trabalhosa: a famosa “plantação de pedra” da piada rural do oeste catarinense: você colhia todos os cascalhos e matacões ao roçar para a plantação, mas na safra seguinte parecia que tinha crescido tudo de novo.
Mas era fértil o suficiente para a família e para dividir com quem precisasse. Nenhum cristão que tenha sobrevivido a tamanha privação teria coragem de ver um irmão passando fome.
Angelina casa-se com Mathias Erdtmann, alemão, meu avô (e que tinha o mesmo primeiro nome que o pai dela). Décadas depois, seria meu nome também. Angelina (pronúncia alemã: Anguêlina) passava a ser chamada pelos netos com a pronúncia brasileira (Anjelina).
UMA RISADA ENORME – Tinha um rosto severo, que não combinava com seu riso de boa vontade e bondade. Tenho lembrança de um café da manhã, somente eu e ela na mesa, café com leite na xícara. Eu devia ter uns 6 anos.
Ela esbarra na xícara e derrama um pouco na mesa, dobrando a borda da toalha para que não espalhasse. Eu, atrapalhado, derrubo um bom terço do líquido, repetindo o gesto dobrando quase toda a toalha na tentativa de contenção. Ela, com aquela cara braba de russa, dá uma risada enorme.
Na Ucrânia estão os irmãos que ficaram nessa travessia, que poderiam ser nós mesmos, e estão no meio de um fogo cruzado de governos que são totalmente alheios ao sofrimento secular dos povos. Esse povo, novamente refugiado na sua própria terra, onde cultivaram e construíram com seu próprio suor, reza novamente o Pai Nosso do cristão na guerra. Livrai-nos do mal.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Caramba, amigo Mathias Erdtmann, você me fez chorar em pleno carnaval. Minha família, por parte de pai e mãe (Azevedo e Quaresma), tinha ascendência judia. Perseguidos pela Inquisição, vieram para o Brasil. Sempre temendo o radicalismo religioso, tentavam mostrar que eram católicos. Justamente por isso, a família Azevedo, em cada lugar no qual se estabelecia no Nordeste, construía logo uma capela. Foi assim que surgiu o vilarejo de Conceição dos Azevedos, no Rio Grande do Norte, que hoje é uma cidade linda e mudou o nome para Jardim do Seridó, porque foi construída num vale acolhedor, às margens do Rio Seridó. Quanto aos imigrantes estrangeiros, o governo brasileiro oferecia passagem paga, concessão de cidadania, lotes de terra livres e desimpedidas, suprimento com primeiras necessidades, materiais de trabalho e animais, isenção de impostos por alguns anos e liberdade de culto. Assim, viva o Brasil! — essa terra acolhedora, que há de ser ainda mais generosa com seus filhos naturais e adotados. Porque, tirando os índios, somos todos estrangeiros. (C.N.)