Os parlamentares democráticos da comissão têm a missão de contar duas histórias
Por Demétrio Magnoli (foto)
André Fernandes (PL-CE), primeiro nome na lista de assinaturas da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do 8/1, está entre os investigados pela tentativa de golpe de Estado. Lá atrás, a escumalha bolsonarista imaginou a CPMI como fábrica de mentiras destinadas a conectar o lulismo à baderna golpista. Eles não previram a possibilidade de que a comissão conte a verdade inteira sobre os eventos em Brasília.
Lá atrás, o governo Lula manobrou para barrar a CPMI –e, tipicamente, o jornalismo chapa-branca correu para oferecer argumentos tão óbvios quanto primitivos. Um: a iniciativa era do bolsonarismo, e com más intenções. E daí? Que tal apostar na capacidade dos brasileiros de enxergar a realidade factual? Dois: a investigação iluminaria a cumplicidade de militares com o golpismo, criando arestas na caserna. E daí? Democracias punem golpistas, com ou sem uniforme verde.
O terceiro argumento, que era o decisivo, permaneceu convenientemente oculto: o sistema judicial cuidaria do assunto, poupando o governo de tensões com seus neo-aliados no Congresso. Lula apostava na célebre "cordialidade brasileira" –ou seja, num pacto implícito de impunidade para o comando golpista organizado ao redor do próprio Bolsonaro. Sem CPMI, ninguém produziria uma narrativa oficial sobre a longa trama política que desaguou no 8/1 –e só os vândalos estúpidos presos em flagrante pagariam pelo crime contra a democracia.
Golpismo, mesmo fracassado, não é brincadeirinha. O Congresso tem, agora, a oportunidade de provar à nação que há uma maioria parlamentar comprometida com as instituições democráticas. Para isso, a CPMI do 8/1 deve ficar conhecida como CPMI de Bolsonaro –e por razões opostas aos desejos da camarilha de André Fernandes.
Selfies dos vândalos ajudaram a incriminá-los. Vídeos de câmeras de seguranças expõem omissões criminosas do GSI, do Batalhão da Guarda Presidencial e de forças policiais. Mas a CPMI faria bem em partir do princípio de que as engrenagens da tentativa de golpe não foram filmadas ou fotografadas. O núcleo golpista não estava nos palácios invadidos no 8/1. O ato derradeiro foi apenas a conclusão de um espetáculo que se desenrolou ao longo do mandato de Bolsonaro.
Os parlamentares democráticos da CPMI têm a missão de contar duas histórias. A primeira é a história política da organização, à luz do dia, de um movimento cujo objetivo era a derrubada do sistema democrático. Seu tecido abrange os discursos presidenciais sobre as virtudes da ditadura militar, os apelos à intervenção do "meu Exército" diante do QG de Brasília em 19 de abril de 2020, as ameaças ao STF no 7 de Setembro de 2021 e a litania de falsidades sobre as urnas eletrônicas que atingiu o paroxismo no comício a embaixadores em 18 de julho de 2022. Bolsonaro não estava dopado durante todo esse percurso.
A segunda é a história criminal da articulação subterrânea de complôs golpistas pelo círculo interno do bolsonarismo. Há muito a ser desvendado, desde a demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e dos três comandantes militares, em 30 de março de 2021, até a minuta do golpe apreendida com o ministro da Justiça (!?) Anderson Torres, passando pelo relatório do Ministério da Defesa que sugeria suspeitas sobre as urnas eletrônicas, em novembro de 2022.
A facção parlamentar ainda fiel ao bolsonarismo prepara-se para montar um circo, embaralhando as frases das duas histórias e tornando-as ininteligíveis. Haverá, porém, uma maioria capaz de consagrar a verdade factual.
De modo geral, comissões parlamentares servem, exclusivamente, à disputa política. Nesse caso, é bem mais que isso. O sucesso da CPMI de Bolsonaro deve ser medido por uma régua exigente: a oferta das provas suficientes para processar criminalmente o núcleo dirigente da tentativa frustrada de golpe de Estado.
Folha de São Paulo