21 outubro 2021 às 12h19
É certo que a Justiça abarca um bem difuso, e seu alcance, frequentemente, desafia a intervenção do Poder Judiciário
José Carlos de Oliveira especial para o Jornal Opção
É certo que a Justiça abarca um bem difuso, e seu alcance, frequentemente, desafia a intervenção do Poder Judiciário.
E, assim, uma vez investido do poder jurisdicional, senti uma enorme carga de responsabilidade sobre os meus ombros.
Depois de ter exercido a advocacia e as atividades inerentes ao Ministério Público, eis-me na condição de Juiz de Direito na comarca de Mozarlândia, e já nos primeiros dias de exercício da judicatura, fui procurado por uma senhora, que compareceu ao meu gabinete, solicitando agilização do julgamento de um processo em que era parte. Ela disse-me:
-Graças a Deus! Agora temos Juiz.
Naquela oportunidade, o cargo de Juiz estava vago há quase três anos. E assim que assumi a comarca, encontrei muitos processos, já com a instrução concluída, aguardando a sentença. Ante aquele quadro, de imediato, deitei sentenças em vários, visto que, naquela situação, o princípio da identidade física do Juiz era mitigado.
Indaguei-lhe qual era o seu nome, e assim que me revelou, dei-lhe conhecimento que já havia julgado a sua causa dois dias antes, a qual versava sobre reconhecimento de sociedade de fato e partilha de bens (atual união estável), pós mortem. Diante da informação, seus olhos brilharam e, erguendo as mãos aos céus, exclamou:
-Graças a Deus, justiça tarda, mas não falta!
Aquela reação causou-me um tremendo desconforto, haja vista que havia julgado por improcedente o seu pedido.
Respirei fundo e fui sincero, dizendo-lhe que não havia acolhido sua pretensão.
Depois de um breve silêncio, pálida e trêmula, perguntou-me:
-Como pode ter julgado improcedente? Como? Eu vivi com ele por quase 30 anos.
Passei a explicar a ela que não havia provas de aquisição ou aumento do patrimônio, durante a convivência com o de cujus; e que, ao contrário, os autos registravam que, quando do início de sua convivência com o falecido, o saudoso
era proprietário de cerca de 600 alqueires de terras, e quando de sua morte, o patrimônio estava reduzido a 270 alqueires.
Olhando-me firme e com a voz pausada e embargada, mas de modo contundente, asseverou-me:
-Mas, se não fosse eu, ele teria morrido sem deixar um alqueire sequer.
E passou a narrar: “Fui morar com ele, quando contava apenas 15 anos de idade, e ele quase um sexagenário. Dei a ele minha juventude e minha saúde, e hoje estou velha, doente e desamparada.”
Contou-me, ainda, que seu falecido companheiro nunca trabalhou e teria recebido aquelas terras por doação de um “padrinho” (que, em verdade, soube mais tarde que o referido padrinho era, de fato, o seu pai, que, por ser casado, não pode reconhecê-lo como filho, mas aquinhoou-o com aquelas terras). Detalhou, também, que o falecido nunca formou um alqueire de pastagem, sequer. E que o seu prazer eram as pescarias e caçadas, e, para suportar as despesas com tais atividades, reiteradamente vendia uma gleba, e assim comprava canoas, motores, armas e munições. Assinalou, ainda, que nunca construiu um curral. Que possuía algumas vacas, e era ela que tirava, todos os dias, um pouco de leite para fazer alguns queijos e, para realizar a ordenha, amarrava a vaca em um tronco de árvore. Prosseguindo, disse-me que se valia de caronas para ir até a cidade vender ovos, alguns queijos, e laranjas, e, com o dinheiro obtido na comercialização dos produtos é que adquiria os gêneros alimentícios de primeira necessidade e os medicamentos.
Relatou que assim que o falecido companheiro foi alcançado pela velhice, tornou-se uma pessoa muito doente, e por isso cuidava dele dia e noite, até o último dia de sua existência.
Finalizando a narrativa, com os olhos marejados e a voz entrecortada pela emoção, disse-me: “E agora veja o que recebo no final da minha vida”.
Acredito que aquela senhora contava cerca de 45 anos de idade, mas o sofrimento que lhe impôs a rotina de sua vida, durante décadas, fazia com que aparentasse uns 70 anos, face enrugada, mãos encarquilhadas, postura curva…
Aquele depoimento repercutiu em mim como um soco no estômago. Fiquei mal.
Recuperando a fala, orientei-a para exigir de seu advogado a interposição de recurso.
Toda a narrativa daquela mulher foi-me confirmada, a posteriori, por várias pessoas que a conheciam. Inclusive, dias depois, andando pela periferia da cidade, deparei-me com ela, residindo em uma casa humilde, quase uma tapera, no instante em que retirava água de um poço, dotado de carretilha. Testemunhei, assim, o seu sofrimento.
Falando com os meus botões, lamentei muito ter julgado aquela causa, sem antes reproduzir as provas colhidas por outro juiz. Uma vez que, caso eu tivesse presidido a audiência de instrução e julgamento, certamente teria tomado o seu depoimento pessoal e, assim, teria formado outro convencimento sobre toda extensão e profundidade dos fatos.
Confesso que, por inexperiência, deixei de adotar tal providência, não obstante a ausência de previsão naquela época, 1986. A previsão para a reprodução das provas veio apenas em 1993, com o advento da Lei 8.637 a qual acrescentou o
parágrafo único ao art. 132 do CPC/73. Mas poderia, sim, para a formação do meu convencimento, ter adotado tal providência.
O recurso de apelação foi interposto, então fiquei na expectativa de seu provimento, para assim aliviar a minha alma.
O recurso de apelação foi distribuído ao ilustre Desembargador Antônio Nery, na época Juiz em Substituição no Tribunal. Então, resolvi procurá-lo e falar da minha infelicidade naquele julgamento, detalhando a verdadeira realidade dos fatos, não posta de forma adequada nos autos.
Alguns meses depois, sempre na expectativa de um julgamento acertado e justo pelo Tribunal de Justiça, eis que retornam à comarca os autos. Com expectativa e sofreguidão, manuseei os autos, buscando suas últimas folhas, eis que para o meu gáudio divisei o acórdão onde estava escrito: “recurso conhecido e provido, sentença reformada nos termos do voto do relator”. Naquele momento, senti um grande alívio e meu coração descomprimido.
Logo depois, solicitei ao senhor Bernardo, porteiro dos auditórios, que fosse até um estabelecimento comercial e comprasse uma caixa de foguetes e que, em seguida, fosse ao campo de aviação e soltasse aqueles rojões, o que foi feito.
O senhor Bernardo nunca me perguntou o porquê daquela comemoração.
A viúva que estava com fome e sede de Justiça, enfim, foi saciada.
https://www.jornalopcao.com.br/colunas-geral/artigo-de-opiniao/um-caso-de-justica-tardia-358818/