Charge do Alpino (Yahoo Notícias)
Manoel Gonçalves Ferreira Filho
Estadão
As mentes profundas que se empenham em tarefas jurídicas graves e difíceis tendem a olvidar princípios elementares que mesmo não juristas conhecem. É isto comum e até natural, pois imersos no complexo acabam descuidando do simples.
Com efeito, qualquer bacharel sabe que o limite entre o arbitrário e o juridicamente lícito é a lei. Afinal, o Estado estruturado segundo a separação dos poderes – e o brasileiro considera “cláusula pétrea” esse instituto (art. 60, § 4º, III) – visa a instaurar “o governo de leis, não de homens”, como já está inscrito no art. 30 da Constituição do Massachussets de 1780.
NA FORMA DA LEI – Deflui disto que um cidadão somente deve ou pode deixar de fazer alguma coisa salvo se ela esteja proibida pela lei. Igualmente ele não terá de fazer alguma coisa que não esteja prevista pela lei – aqui não é preciso ir até a América do Norte para sabê-lo, pois está com todas as letras no art. 5º, II da Constituição brasileira em vigor.
Por outro lado, decorre logicamente disto que uma autoridade, mesmo um magistrado, não pode puni-lo pelo que não tiver feito contra lei vigente. E mais de acordo com a lei que regula o processo punitivo e as garantias que nele se estabelecem.
Do contrário, exerceria um poder arbitrário, pois dependente apenas e tão somente de sua razão ou capricho. Isto ocorre mesmo no caso dos poderes ditos discricionários que eventualmente ele receba da lei para atuar.
EXISTEM LIMITES – Com efeito, a lei que estabelece tal discricionaridade, além de ela própria definir-lhe o campo, os limites, está sujeita ao respeito dos direitos fundamentais e da disciplina jurídica adotada pela Constituição. No caso brasileiro, o Estado Democrático de Direito (Constituição, art. 1º), que como Estado de Direito põe acima de tudo o respeito à lei.
Assim sendo, não cabe a qualquer autoridade aplicar normas que não estejam na lei, adotada pelo Poder competente. Mesmo que esteja imbuído subjetivamente do propósito de fazer Justiça.
Quem diz o que é justo, o que pode ser feito ou o que não pode ser feito, é sempre a lei, expressão da vontade geral, como está no art. 6º da Declaração de 1789. Para isto é que existe um Poder Legislativo, distinto do Executivo e mesmo do Judiciário
ARBÍTRIO E DISCRIÇÃO – Resulta disto a elementar diferença entre arbítrio e discrição, entre o abuso e ação legal, mesmo no campo da discricionariedade. Esta tem de escorar estritamente na lei e no sistema jurídico.
Ora, a proscrição do abuso, do arbítrio é a razão de ser da Constituição, como da lei. Desrespeitar a lei, ir além do que esta dispõe, é eminentemente uma ofensa à Constituição – uma flagrante inconstitucionalidade.
A Constituição brasileira, por exemplo, para enfatizar a imprescindibilidade de lei, veda expressamente que “medidas provisórias” – essa teratologia nacional – disponham sobre direito penal e direito processual penal, entre outras matérias (art. 62, § 1º, “b”, com a redação da Emenda Constitucional nº 32/2001.) Mostra isto à saciedade que apenas a lei formal pode tratar de crimes e sua punição.
SITUAÇÕES EMERGENCIAIS – Por outro lado, no direito brasileiro, na Constituição em vigor, há uma minuciosa disciplina até para situações emergenciais. Há a intervenção nos entes federativos (art. 34 e seguintes), o estado de defesa para perturbações da ordem e calamidades públicos (art. 136), o estado de sítio, para perturbações graves (art. 137), previstos na Constituição, o art. 142 a prever o emprego das Forças Armadas em defesa da “lei e da ordem”, afora um sem número de leis ordinárias proibindo atos contra a segurança e os direitos de cada cidadão e regulando as medidas processuais que contra elas podem ser impostas.
O mesmo se diga em relação a autoridades públicas que não podem ser afastadas do cargo que exercem sem que se observem as formalidades constitucionais e legais.
Incluídas nesse campo, com mais razão, as autoridades estaduais e municipais, como forma de assegurar aos entes federativos a autonomia conferida pela Constituição.
ARBITRARIEDADES – Por que então desprezar o império da lei, preferindo-lhe o arbitrário? Não é preciso recorrer ao este para a defesa da segurança e dos direitos fundamentais eventualmente ameaçados.
Há na Constituição e na legislação brasileira – reitere-se – meios legais para tanto, inclusive para punir os infratores, mesmo os que infringem a Lei das Leis.
Ir além das leis, mesmo que com o melhor dos propósitos, é vedado no Estado Democrático de Direito que está presente no primeiro artigo da Constituição vigente. É infringi-lo, portanto.