Elio Gaspari
Folha/O Globo
Depois de meia dúzia de anúncios desastrados, Lula reuniu seu ministério. Cenograficamente, foi um belo espetáculo. Seu melhor momento deveu-se a algo que não aconteceu. Ele não mencionou uma proposta que circulava nos subúrbios do poder. A ideia era simples: programa do governo só poderia ser anunciado depois de ser submetido à Casa Civil da Presidência. Quase todos os governos anteriores tentaram e nenhum conseguiu.
Não se consegue porque esse tipo de unidade a partir de um toque de corneta é sonho de noite de verão. No fundo, basta que se respeite a lição do presidente Rodrigues Alves há mais de um século: “Meus ministros fazem o que querem, menos o que eu não quero que eles façam”.
DANOS NO ATACADO – As trapalhadas dos hierarcas encantados com as próprias vozes foram prejudiciais no varejo. Isso numa semana durante a qual dois dos mais poderosos ministros causaram danos no atacado.
Rui Costa, o chefe da Casa Civil, foi perguntado sobre o texto que Lula escreveu dias antes do segundo turno: “Se eleito, serei presidente de um mandato só”. Um mês antes, ele havia dito que “não [seria] possível um cidadão de 81 anos querer a reeleição”.
Rui Costa respondeu: “Se tudo der certo, e com fé em Deus dará, faremos um governo exitoso. E, se ele continuar, como ele próprio diz, com energia e o tesão de 20 anos, quem sabe ele pode fazer um novo mandato presidencial”. Nada melhor para desorganizar o tabuleiro de alianças que levaram o PT ao governo.
MANCADA DE HADDAD – No dia seguinte, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi perguntado sobre os efeitos da taxa de juros fixada pelo Banco Central e respondeu:
“Você tem um mundo onde você tem uma taxa de inflação menor que os EUA e a Europa, só que nós estamos com a taxa de juros maior do planeta, a taxa de juros real. Então olha o paradoxo que nós estamos vivendo. É uma situação completamente anômala, uma inflação comparativamente baixa, e uma taxa de juros real fora de propósito para uma economia que já vem desacelerando”.
Haddad sabe que o Banco Central tem autonomia para fixar a taxa de juros. Carlos Lupi falando em revisão da reforma da Previdência joga palavras ao vento. Haddad se metendo com a taxa de juros é prenúncio de uma relação agreste entre a Fazenda e o BC. Sobretudo com expressões professorais como “anômala” e “fora de propósito”.
ESPECULAÇÃO – Dias depois, Rui Costa também se meteu com a taxa Selic. Se a atual taxa de 13,75% é maléfica, esse tipo de contestação só serve a quem opera na especulação.
Em tempo: Nos outros dois governos de Lula, o vice-presidente José Alencar falava contra a taxa de juros dia sim, dia não, mas à época o BC não tinha autonomia por força da lei.
O enciclopedismo do doutor Rui Costa levou-o a cometer uma injustiça. Criticou o que chama de “travas” que atrapalham o progresso do país e deu como exemplo a demora de até três anos da Anvisa para liberar a venda de remédios.
ILHA DE RACIONALIDADE – Durante as loucuras oficiais da pandemia, a Anvisa foi uma ilha de racionalidade e seu presidente, Antônio Barra Torres, um valente defensor da agência.
Homem educado, lembrou que ainda não conversou com Costa. Quando o fizer, poderá explicar as dificuldades que afligem a instituição.
Barra Torres já sugeriu ao governo que abra um concurso para contratar novos servidores, pelo menos para preencher as vagas de quem pode se aposentar.