Marcelo Rech
O Globo
O atentado contra a democracia a que o mundo assistiu no domingo, quando uma horda de fanáticos de extrema direita invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes, em Brasília, não foi um evento que brotou por geração espontânea. Os milhares de baderneiros que marcharam para o coração da democracia brasileira com a intenção de estrangulá-la representam a ponta de um fenômeno de extensão global que ameaça a própria estabilidade do planeta.
Por anos, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro vêm sendo alimentados com teorias da conspiração, falseamentos da realidade ou simples crendices.
ALUCINAÇÃO COLETIVA – Agora, incentivados por influenciadores de redes sociais, milhares de pessoas deixaram suas casas e famílias e foram viver em barracas diante de unidades militares em centenas de cidades para pedir uma “intervenção federal contra a fraude nas urnas”.
Foi destes acampamentos que saíram os radicais que invadiram as sedes da Presidência, da Suprema Corte e do Congresso.
É possível reconhecer traços dessa alucinação coletiva por quase todos os lugares. Nenhuma nação, por mais avançada e desenvolvida, está imune a esse vírus que corrói a verdade, a pluralidade, o respeito a opiniões adversas e, portanto, a própria convivência amistosa entre contrários, base de qualquer sociedade democrática.
NUVEM TÓXICA -Diante de tais ameaças, chegou a hora de dar um basta nessa epidemia. Assim como as Nações Unidas trouxeram para as mesas de negociações os que têm o poder de conter o aquecimento global, a mesma ONU precisa tomar a frente do combate à desinformação por meio de um grande acordo global, autorregulamentado, que reverta o desastre anunciado.
Para começar, as Nações Unidas deveriam convidar para se sentar à mesa as duas partes com poderes imediatos de conter e reverter a epidemia: as grandes plataformas de tecnologia e representantes do jornalismo profissional. Ressalve-se que, no Brasil e no mundo, a nuvem tóxica das fake news se propaga no vácuo do jornalismo.
A imprensa se viu forçada a uma contração diante de insuperáveis, até agora, dificuldades para criar um novo modelo econômico desde que suas receitas passaram a engordar os balanços das chamadas big techs.
PRIMEIRAS MEDIDAS – O jornalismo está longe da perfeição, mas, como se viu durante a pandemia, ainda é o melhor antídoto para valorizar as fontes confiáveis, restabelecer a verdade e fazer a verificação de versões que circulam por redes sociais e grupos de mensagem.
Alguns países, como Austrália e Nova Zelândia, têm aprovado leis que recuperam, em boa medida, o desequilíbrio financeiro dos veículos de comunicação e permitem a gradual reocupação dos chamados desertos de notícias.
Embora representem um avanço, tais legislações não são uma solução alcançável para a maior parte do planeta. Em dezenas de países da América Latina, África e Ásia, especialmente, governos e parlamentos não gostariam de ver uma imprensa fortalecida, com mais pluralidade, diversidade e capacidade de investigação e, portanto, de confrontá-los em nome da defesa da sociedade.
HAVERÁ PERCALÇOS – A mesa em busca de um pacto também não seria uma alternativa sem percalços ou eventuais recuos. Mas, com o apoio de governos e sociedades democráticas, um grande pacto global contra a desinformação é possível.
É também uma necessidade para o negócio e a própria existência das big techs, que sofrem ameaças constantes de controles de conteúdo e regulações externas por autocracias que nem sempre exibem as melhores intenções.
Chega, portanto, de procrastinação e de esconder a realidade, na esperança vã de uma cura natural para a epidemia das fake news. O mundo livre ainda tem a capacidade de se indignar com motivos reais e concretos, como a insurreição em Brasília. Mas precisa criar o mais rápido possível a vacina contra a desinformação, antes que o vírus contamine muitas outras capitais do planeta.