Publicado em 7 de janeiro de 2023 por Tribuna da Internet
Pedro Doria
O Globo
O governo Lula quer bater de frente com a máquina de desinformação que ameaça faz já pelo menos cinco anos a democracia brasileira. Ponto para ele. Mas começou mal — de forma atabalhoada, desastrada e, ora, no mínimo desinformada. É que a Advocacia-Geral da União tomou para si o trabalho de definir desinformação. As aspas são oficiais:
“Mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas com prejuízo à sociedade e com o objetivo de promover ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas.”
EXEMPLO DE BOLSONARO – Política pública quem determina qual é, evidentemente, é o governo. Imaginemos que essa definição valesse para o governo Bolsonaro em plena pandemia. O que seria a “correta execução das políticas públicas” em plena quarentena de 2020? Distribuir cloroquina, talvez. Ou promover aglomeração no entorno do presidente quando o contágio estava a toda.
Se Jair Bolsonaro publicasse uma definição assim, contra “ataques deliberados aos membros dos Poderes” para embaraçar o exercício das funções públicas, a sociedade civil de presto levantaria o dedo para observar mais um avanço antidemocrático.
Alguns poderiam argumentar, em benefício da AGU, que ela está falando de algo mais específico, de uma mentira que seja voluntária e danosa. Mas não tem nada de trivial definir se alguém mentiu ou se enganou e, a partir daí, se mentiu com o objetivo de causar dano.
É UMA INTIMIDAÇÃO – Fosse simples determinar o que é mentira danosa, o problema continua de pé. Não pode, numa democracia, o governo definir o que é uma “política pública corretamente executada” e ter uma norma, qualquer norma, que possa intimidar seus críticos.
Definido desta forma, qualquer um que critique políticas públicas poderá ser acusado de estar mentindo com o objetivo de causar dano. Mesmo que inocente, o crítico terá de pagar advogado — se tiver recursos para tal —, gastar tempo na Justiça, enfrentar o peso do Estado.
Não pode, e não pode por um motivo muito simples: a definição de democracia exige que o Estado jamais use seu peso para intimidar qualquer cidadão que questione as intenções do governante. É isso que diferencia democracia de todos os outros regimes.
MUITA PRESSA – O início é terrível e atabalhoado por um motivo simples: caso os responsáveis pela regra não tenham se preparado para encarar um problema desse tamanho, poderiam perfeitamente ter esperado mais uns dias, umas semanas, mesmo alguns meses.
Muita gente, na academia e na sociedade civil, estuda esse problema a fundo e há anos. Junta uns dez numa sala por um mês, e o resultado sai uma excelente proposta inicial.
Além do que, o foco da AGU está possivelmente errado. Não tem nada de trivial ir de tuíte em tuíte definindo o que é desinformação que ameaça a democracia e o que não é.
DOIS MOTIVOS – Primeiro, porque desinformação não é só mentira, ela é mais eficiente quando confunde, quando planta dúvidas, quando termina com reticências, e não exclamação. Segundo, porque a ameaça à democracia está mais numa força que impõe o ódio, o dissenso, que dificulta conversas e racha a sociedade, do que nas mentiras.
Essa força é o algoritmo. O problema não é o tuíte, é o algoritmo que decide que aquele tuíte, post, foto ou vídeo alcançará dez ou 20 milhões.
Quando bombardeados por ódio, raiva e insanidade todos os dias, saímos todos irritados e pouco dispostos a encarar quem discordamos. Regular a distribuição é mais eficiente do que regular a mensagem, e aí nem precisa encarar problemas espinhosos como liberdade de expressão.