Publicado em 1 de janeiro de 2023 por Tribuna da Internet
Pablo Ortellado
O Globo
As mobilizações bolsonaristas têm mostrado resiliência, com ações de protesto sustentadas por um período bastante estendido, mas também vêm perdendo apoio. Isso não apenas deixa os bolsonaristas radicais isolados, como tem consequências políticas para a estratégia populista do grupo.
Quando analisamos a evolução do levante antipetista, na sua duração mais longa, chama a atenção como a identidade política vai mudando de uma rejeição a rótulos, nas primeiras mobilizações contra Dilma Rousseff em 2015-2016, para uma afirmação entusiasmada das identidades de “direita” e de “conservador”, que surgem com força na campanha de 2018.
NO POPULISMO – Estudos têm mostrado que, na tradição histórica do populismo, prevalece a rejeição das identidades políticas. O líder populista típico não se diz nem de esquerda nem de direita, justamente porque pretende representar integralmente o povo contra as elites corruptas.
O bolsonarismo concilia seu populismo com a adoção orgulhosa do rótulo de “direita”, identificando a esquerda com as elites culturais e políticas. Essa opção, porém, tem um risco. Ao adotar uma identidade de direita, há um reconhecimento tácito de que a comunidade política está dividida em duas partes, com a esquerda constituindo a outra metade.
Se essa adoção de uma identidade já tinha aberto uma pequena rachadura na visão de mundo populista, o abandono da camisa da seleção escancarou o problema.
UM FORTE SÍMBOLO – Desde 2015, o antipetismo adotou como uniforme a camisa da seleção brasileira. A amarelinha, que muitos brasileiros tinham na gaveta, é um forte símbolo de união nacional — talvez o mais poderoso.
Ao adotá-la como uniforme político, os antipetistas, e em seguida os bolsonaristas, conseguiam representar o ideal populista de uma maneira simples e direta: a multidão na rua era o povo — a manifestação falava por todos os brasileiros, inclusive por aqueles que, por preguiça ou inércia, tinham ficado em casa.
Nesse período heroico, que vai de 2015 a 2018, o antipetismo sustentava a ilusão de que se havia forjado uma comunhão nacional para sobrepujar e esmagar a minoria petista, imaginariamente reduzida a pequenos grupos de corrompidos que — em troca de Bolsa Família, recursos da Lei Rouanet ou pão com mortadela — desavergonhadamente defendiam seus patrões.
VERDE OLIVA E PRETO – Após a derrota eleitoral em outubro, porém, tudo mudou. Em vez de aproveitarem a onda verde e amarela trazida pela Copa do Mundo e sugerirem que o brasileiro orgulhoso da seleção de Tite e os ativistas mobilizados nos quartéis eram um corpo só, muitos bolsonaristas fizeram questão de se separar das massas, abandonando a camisa da CBF, adotando o verde-oliva e o preto como uniforme. Identidade política e estratégia populista se chocaram.
Nada poderia ser mais sintomático da crise na capacidade de os bolsonaristas se apresentarem como o povo, ou, pelo menos, como a vanguarda do povo.
Logo outros sinais surgiram. Antes, os bolsonaristas, confiantes em sua estima pública, abraçavam populares que demonstrassem simpatia, rapidamente incluídos no movimento. Agora, suspeitam e rejeitam qualquer tipo de apoio vindo de estranhos.
DESCONFIANÇA TOTAL – Simpatizantes que tentaram doar alimentos nos acampamentos foram violentamente rechaçados e acusados de tentativas de envenenamento com suas doações. O bolsonarismo ficou sectário.
Os manifestantes mobilizados nos quartéis estão agora visivelmente isolados. Isso não tem apenas impacto no seu moral baixo, mas também fere de morte a capacidade do bolsonarismo de sustentar um discurso populista do tipo “o povo contra as elites”.
Isso não significa que o bolsonarismo morrerá, mas mostra que será obrigado a se reinventar, não apenas como oposição, mas também com a amarga suspeita de ser uma minoria.