Goste ou não, Haddad é o herdeiro das escolhas feitas entre 2005 e 2007
Por Demétrio Magnoli (foto)
Frustrou-se, uma vez mais, a profecia tantas vezes repetida da convergência final entre PT e PSDB. Prevaleceu uma lógica férrea, escrita nas estrelas. Foi Haddad, que perambula como um condenado, preso à armadilha da desconfiança, falando sem parar na tentativa de rimar “responsabilidade social” com “responsabilidade fiscal”. Não foram Persio ou Arminio, que nada precisariam dizer, como tantos sonharam na hora da “carta dos economistas”, marco da ilusória frente democrática do segundo turno. Quem quiser entender o desenlace precisa ler “Eles não são loucos — Os bastidores da transição presidencial FHC-Lula” (Portfolio-Penguin), do jornalista João Borges.
“Eles não são loucos” foi a mensagem transmitida muitas vezes por Ilan Goldfajn e Murilo Portugal, em nome do governo de FH, a interlocutores do Tesouro dos EUA e do FMI, no ano quente de 2002, quando se duvidava da sanidade macroeconômica do provável futuro governo Lula. No fim daquele ano, durante uma transição presidencial modelar, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, e o presidente do BC, Arminio Fraga, operaram como conselheiros de Antonio Palocci, que assumiria a Fazenda de Lula, sugerindo diversos nomes que comporiam sua equipe econômica.
Não eram loucos — muito pelo contrário. O BC ficou sob a guarda de Henrique Meirelles e Alexandre Schwartsman. Na Fazenda, Marcos Lisboa e Joaquim Levy davam as cartas. A equipe preservou o tripé macroeconômico de Arminio e desenhou um rumo de redução sustentada da dívida, da inflação e da taxa de juros. Em 2005, Palocci enxergou uma “oportunidade histórica” de convergência, propondo um roteiro para zerar o déficit total das contas públicas no horizonte de dez anos. Na sua visão, a competição PT-PSDB seria reorganizada, alicerçando-se sobre um consenso básico de política econômica.
O superministro José Dirceu, que comandava a resistência à convergência de Palocci, renunciou em junho daquele ano, sob o impacto devastador do escândalo do mensalão. Abria-se, aparentemente, uma autopista para os planos do ministro da Fazenda.
A fonte primária da resistência era, contudo, o próprio Lula. Desde o início, o presidente adotara a expressão “herança maldita” para qualificar a política econômica que ele prosseguia. A estratégia narrativa certamente refletia seu interesse político numa polarização perene. Provavelmente, ainda, exprimia a convicção presidencial de que a linha da equipe econômica era um desvio transitório, a ser substituída por forte expansão fiscal. Na esteira da crise do mensalão, Lula cortou as asas de Palocci.
O alarme soou na manhã de 9 de novembro de 2005, sob a forma de uma entrevista em que a então nova ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, pregou o adjetivo “rudimentar” no plano de ajuste de longo prazo da Fazenda. Dali em diante, o projeto de reeleição de Lula encontrou-se com o lema “despesa é vida”, de Rousseff. No início de 2007, o presidente reeleito lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), fruto do conceito de que o investimento público é o motor principal da economia.
O resto é conhecido. No embalo do ciclo internacional de commodities, o segundo mandato de Lula encerrou-se gloriosamente, com expansão do PIB de 7,5% e o triunfo eleitoral da candidata selecionada por um “dedazo” presidencial. A sucessora, embriagada pelo sucesso ilusório, preencheu a equipe econômica com seus “loucos” e embrenhou-se na selva escura de políticas fiscais e monetárias expansionistas, até fabricar uma depressão histórica. A polarização venceu.
Goste ou não, Haddad é o herdeiro das escolhas feitas entre 2005 e 2007. Em tese, as lições do desastre dilmista poderiam propiciar a retomada da ideia de convergência. Muitos depositaram suas esperanças nessa hipótese — entre eles, alguns dos signatários da “carta dos economistas”. Contudo as lições óbvias foram soterradas pela narrativa do “golpe do impeachment”, manufaturada com a finalidade de caiar com tinta branca a fachada da casa petista.
Lula 3 não extrairá sua inspiração de Lula 1. Eis algo que se aprende no livro de João Borges.
O Globo