Não será surpresa se o candidato à reeleição para presidente da República escapulir de todos os debates agendados pelas grandes mídias profissionais do país
Por Dorrit Harazim (foto)
Não é de hoje que o ser humano faz promessas de acordo com suas conveniências, mas age de acordo com seus medos. Para muitos, o medo da morte, quando sobrepassa qualquer outro, pode tornar-se a mais degradante das nossas emoções. A britânica Gertrude Bell, extraordinária mulher da era vitoriana, produziu escritos sobre o tema. Ela tinha escopo e vivência para isso — nascida em família afluente e vanguardista, teve formação e liberdade raras para mulheres de sua época. Bell foi arqueóloga, escritora, desbravadora, aprendeu a língua persa e o árabe, moveu desertos ao lado de T.E. Lawrence e participou do redesenho imperial no pós-Grande Guerra com o então secretário das Colônias, Winston Churchill. Mulherão, em suma. É dela a observação de que o medo da morte esgarça os limites e as convenções que tornam possível a convivência social. “Esse medo revela quanto somos animalescos. Não há nobreza na luta diária pela sobrevivência. Quem vive esse medo deixa de lado honra, autoestima e tudo o mais que poderia dar valor ao mero fato de continuar vivo”, escreveu.
Nossos outros medos, sejam eles baseados na percepção de perigo real ou desencadeados por construções imaginárias, também dão trabalho. Vez por outra podem levar à insânia, não apenas do portador como de seu redor. Tome-se como exemplo Jair Bolsonaro. Há três anos e meio o presidente explora politicamente a facada de que foi vítima semanas antes da eleição de 2018. O atentado foi real e teve gravidade — em mais de um sentido, pois catapultou o capitão a chefe da nação. Mas Bolsonaro sarou — e poderia nunca mais falar no assunto, ou abordá-lo com a bonomia de um Ronald Reagan. Em 1981, meros 69 dias depois de ter sido empossado na Casa Branca, o então presidente dos Estados Unidos teve o pulmão perfurado por dois tiros numa tentativa de assassinato político. Reagan jamais se apresentou como vítima, dissipando assim o medo coletivo. Jair, ao contrário, relembra a facada para simular perigo, semear inquietude e proclamar a seu eleitorado que Deus é bolsonarista.
Diversionismos à parte, o presidente tem dois sólidos motivos de pânico a oito semanas das eleições de 2 e 30 de outubro (em caso de segundo turno): 1) ser despejado do emprego pelo voto popular ; 2) os desmandos de sua Presidência serem submetidos à Justiça, ele tornar-se réu, ser condenado, ir para a cadeia.
Um homem com medo é uma visão do feio, escreveu o dramaturgo Jean Anouilh, que testemunhou o acovardamento do governo colaboracionista da França na Segunda Guerra. Medo tem cheiro, garante a canadense Margaret Atwood (“O conto da aia”). Ambos têm razão. Jair Bolsonaro anda transpirando medo por todos os poros, e o espetáculo nada tem de bonito. Nem de democrático. Com as pesquisas de opinião apontando a vantagem do adversário petista Luiz Inácio Lula da Silva, todas as inseguranças do atual ocupante do cargo se mesclam, se autoalimentam e cavam trincheiras no comportamento presidencial.
Na sexta-feira, com quatro meses de atraso, o Palácio do Planalto apresentou ao Jornal Nacional uma condição de última hora para Bolsonaro participar das sabatinas com os presidenciáveis: a entrevista só seria concedida no Palácio da Alvorada. Como imaginado e esperado pelo capitão, a emissora rejeitou a exceção. Ao final, acertaram-se, e o presidente comparecerá. Mas entrevista solo é uma coisa, debates com concorrentes, outra bem diferente. É notória a dificuldade de Jair em articular conceitos e defender argumentos com clareza. Não será surpresa, portanto, se o candidato à reeleição para Presidente da República tentar escapulir de todos os debates agendados pelas grandes mídias profissionais do país. Danem-se os eleitores. Não foi diferente em 2018.
Quanto à insânia referida acima, ela pode vir a galope aluado ou em roupagens estranhas, tudo por medo. Segundo revelou a jornalista Mônica Bergamo, Bolsonaro tem repetido a interlocutores que, em caso de derrota nas eleições, teme vir a ser alvo de inquérito policial destinado a resultar na sua prisão. Aventa também que três de seus filhos (encrencados em operações de “rachadinha” e outros malfeitos) ficarão mais expostos a inquéritos sem a proteção palaciana do pai. Garante, porém, que reagirá. “Não serei preso com facilidade”, seria um de seus bordões atuais, ligeiramente menos irrealista que seu brado do 7 de Setembro passado: “Nunca serei preso”.
Cabe perguntar ao capitão, pedindo licença à genialidade de Jô Soares : “Sois rei?”.
Ficou difícil rir com humanidade num Brasil sem o Gordo.
O Globo