O telescópio James Webb e a falta de investimento em universidades federais brasileiras
Por Muniz Sodré* (foto)
Na mesma semana em que o telescópio espacial James Webb estonteava o mundo da ciência com a visão nítida da luz das galáxias emitida há 13 bilhões de anos, 17 universidades federais brasileiras, com perdas de R$ 400 milhões, anunciavam o risco iminente de paralisia e os congressistas desmontavam a Constituição para o governo gastar a perder de vista.
Uma coisa tem muito a ver com as outras. Primeiro é que o telescópio, construído ao longo de 15 anos, custou quase US$ 10 bilhões, valor próximo aos R$ 41 bilhões disponíveis para alguns meses de farra pré-eleitoral. Pior, estima-se em R$ 300 bilhões a meta de gasto, já avaliado como o maior episódio de corrupção da história republicana.
Não escapam à percepção crítica de uma cidadania "razoável" os sinais do preocupante declínio civil, por total alheamento da classe dirigente à sustentabilidade da nação. E não é para menos, pois, na lógica individual ou coletiva da cidadania liberal, a existência de civilidade e democracia duráveis é correlata à formação de uma massa crítica de sujeitos suficientemente politizados para reivindicar o primado da soberania popular. Isso depende evidentemente de uma pedagogia da democracia, que, mesmo numa sociedade de tradição autoritária, pode ter força expansiva em círculos restritos mas revelar-se precária, senão inexistente, no nível das massas. É o caso brasileiro.
Sob o neoliberalismo, é generalizada a realidade problemática do que se conhecem como nação e povo, com dissociação crescente entre Estado e sociedade civil. Nessa fratura, em que o economicismo e o privatismo se levantam como valores maiores, os grupos sociais afastados de instâncias decisórias e regulados pelo mercado são presa da política que não ousa confessar o seu nome, isto é, aquela induzida pela mídia. O resultado é o que podemos chamar de "cidadão-cliente", alvo eleitoral fácil da demagogia populista e das formas toscas do autocratismo.
A "clientela" vitoriosa nas urnas brasileiras quatro anos atrás extraiu a sua energia política (que antes existia em estado inercial) da imunodeficiência da esquerda, pretensa única portadora do bem e da verdade, logo, indiferente ao imperativo de auscultar as massas ou de avaliar os processos de fragmentação da realidade.
Em consequência, emergiu do buraco negro social uma obscura nebulosa humana, sob a forma catastrófica da extrema direita, avessa a educação, ciência e verdade. Para essa gente, universidade é um estorvo. E um feito científico como o James Webb não lhe diz nada, guiada que é por seu "telescópio" metafórico, também apontado para o passado: não o da luz das galáxias, e sim da lanterna de popa da mais atroz regressão social.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".
Folha de São Paulo