Considerar que a mera redução de impostos seja o equivalente a uma reforma tributária, como fez o ministro, é piada de mau gosto que resume a tacanha visão bolsonarista de mundo
O País em que vive o ministro da Economia, Paulo Guedes, não é o mesmo em que vive a maioria dos brasileiros. No Brasil de Guedes, a economia estaria no início de um longo ciclo de crescimento, com investimentos bilionários contratados para os próximos anos, inflação controlada e geração consistente de empregos. Até aí, seria possível argumentar que o ministro tenta injetar no mercado um otimismo próximo do que seria uma profecia autorrealizável, ainda que não seja esse o papel que dele se espera. Mas enquanto o futuro é uma abstração, o passado e o presente são incontestáveis, e brigar com uma realidade muito palpável é simplesmente distorcer fatos. É isso que o ministro fez nesta semana ao dizer, num evento de investidores, que o governo Jair Bolsonaro fez uma “reforma tributária invisível”.
Na narrativa de Guedes, medidas como a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e a imposição de um teto para o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de bens essenciais, como combustíveis e energia, seriam evidências do trabalho silencioso do governo no que diz respeito ao avanço das reformas. Convicto de que percorre o caminho correto, o ministro prometeu zerar o IPI caso o presidente Jair Bolsonaro seja reeleito. Para além do fato de que a atual administração teve o mérito de reinaugurar um litígio com Estados que já chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) – e do qual a União muito provavelmente se sagrará perdedora –, Guedes demonstrou uma profunda incompreensão sobre a essência de uma reforma tributária e sobre a importância de um governo ter um projeto de país.
São muitas as distorções do nosso sistema tributário. Gastam-se muito tempo e dinheiro para pagar impostos, o que drena a produtividade e a competitividade da economia. Há regimes paralelos – lucro real, lucro presumido e o de profissionais autônomos – que tributam um mesmo serviço de forma absolutamente distinta, como bem explicou o diretor do Centro de Cidadania Fiscal, Bernard Appy, em sua coluna no Estadão. No longo caminho entre a produção de soja e o embarque no porto, há diferentes alíquotas de impostos a depender do regime de tributação do produtor, do subproduto final e dos Estados de origem e destino. Com maior proporção de tributos sobre o consumo em detrimento da renda, o Brasil não combate desigualdades e, pior, as amplia.
Mas há algo em comum a todas essas distorções: todas são velhas conhecidas. Combatê-las, portanto, seria prioridade de qualquer governo com algum nível de responsabilidade e liderança. Construir uma proposta consensual em torno de uma reforma tributária é algo tão desafiador quanto necessário para que a economia volte a crescer, gerar empregos e reduzir a pobreza. Há diferentes formas de chegar a um mesmo objetivo, mas nenhuma delas passa por, às vésperas de uma eleição presidencial, reduzir as receitas de Estados e municípios sem compensação, tampouco por baixar impostos sem que haja contrapartida dos setores beneficiados ou garantia de que essa queda chegará ao consumidor final. Isso, certamente, não pode ser chamado de reforma tributária, visível ou não.
Ademais, a elaboração de uma proposta de reforma tributária deveria ser precedida pelo dimensionamento do Estado que temos e do Estado que almejamos ser, o que demandaria um projeto de governo – hoje inexistente. Milhões de famílias voltaram a passar fome todos os dias, mas o País nunca foi capaz de entregar serviços que garantissem um mínimo de dignidade aos mais pobres. O primeiro passo para resolver essas mazelas é enxergá-las, posto que não são invisíveis como a reforma que Guedes se jacta de ter feito. Com desafios históricos ainda a serem enfrentados, o Brasil deve almejar mais eficiência na execução do gasto público, mas não pode se dar ao luxo de nortear suas decisões pela redução de impostos. Abrir mão de receitas que possam financiar a solução destes problemas é o mesmo que aceitá-los como algo natural e imutável, o que diz muito sobre a visão de mundo de Guedes e de Bolsonaro.
O Estado de São Paulo