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sexta-feira, julho 26, 2024

‘Somos invisíveis’, diz dono de uma fábrica que faliu após o ajuste de Milei

Publicado em 26 de julho de 2024 por Tribuna da Internet

Um homem de barba e bigode está de pé em um armazém, vestindo uma camiseta preta. Atrás dele, há várias caixas de papelão empilhadas. À direita, há uma mesa com vários assentos de bilicleta coloridos. O ambiente parece ser um depósito ou área de armazenamento.

Rogérlo Bella teve de fechar a fábrica que o pai criou

Douglas Gavras
Folha

Vai ser um desafio para o argentino Rogelio Bella, 45 anos, imaginar a vida daqui em diante, sem a Bicipartes El Miguelito. A fábrica de assentos para bicicletas fechou as portas no fim de junho, após 56 anos.

O negócio que começou com o pai dele empregava 12 pessoas —algumas há mais de 30 anos— e sobreviveu a uma série de crises econômicas que afetaram a Argentina.

A mais fresca na memória do empresário é a do “corralito”, de 2001, que restringiu os saques dos argentinos, provocou a renúncia do presidente Fernando de la Rúa e terminou com mais de 30 mortos. Mas o negócio sobreviveu até o pacote de austeridade de Javier Milei.

SEM CONSUMO – As medidas implementadas pelo presidente para domar a inflação atingiram em cheio o consumo. O PIB (Produto Interno Bruto) caiu 5,1% no primeiro trimestre ante o mesmo período de 2023, e o governo sacrificou aposentadorias, demitiu servidores e parou obras públicas. Leia o relato de

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MILEI NOS LEVOU A FECHAR AS PORTAS

Rogelio Bella

“A empresa começou em 1968 com o meu pai, que fabricava capas para assentos, em um quartinho de casa. Naquela época, eles eram de aço e se fazia uma capa de borracha costurada com diferentes tecidos. Usavam-se muito as bandeirinhas dos clubes de futebol do país para ilustrar. Ele costurava com os meus avós e a sua namorada na época, que veio a se tornar minha mãe.

No fim dos anos 80 e início dos anos 90, houve uma reestruturação para fabricar o modelo atual, de base plástica. Mais tarde, meu pai conseguiu um sócio e o filho dele esteve comigo até o fim, éramos a segunda geração à frente do negócio.

De alguma forma, toda a minha vida transcorreu ao redor dela, desde muito cedo. Estudei em uma escola técnica e, quando chegava o verão, trabalhava algumas horas para juntar uns trocados e sair com amigos. Há cerca de 23 anos estava na gerência.

COMO EINSTEIN – Aprendi a andar entre as máquinas. Quando era pequeno, ver tudo funcionando era como me imaginar na Nasa. Na adolescência, tive uma ideia para resolver um problema na fabricação dos assentos que foi usada até o último dia. Na época, me senti meio como Einstein pela descoberta. Viajei por todo o país durante muitos anos, graças à ela. Tenho lembranças que para mim serão inesquecíveis.

Somos de Carrizales (província de Santa Fé), um povoado de 1.000 habitantes a 60 quilômetros de Rosário, e dávamos trabalho a 12 famílias daqui. Dá para imaginar o que isso significa: não há outras oportunidades de trabalho, é um lugar muito vinculado à atividade agrícola e éramos, basicamente, a única indústria local.

Era a única empresa que durante mais de 50 anos ininterruptamente fabricou o produto no país. Em Buenos Aires há algumas empresas muito menores que fazem um pouco e a maioria da produção é importada. Acredito que, como fábrica nacional, éramos a de maior presença no mercado.

IMPOSSÍVEL COMPETIR – Sobrevivemos à crise de 2001, do ‘corralito’, e a muitas outras. Nós fazíamos um produto que na Argentina, seu principal competidor é a importação. É difícil competir com os preços do Brasil e, sobretudo, com os da China. Temos um problema sério, com a diferença que pagamos pelas matérias-primas em relação ao que paga um industrial brasileiro ou um chinês.

A empresa tinha um ponto de equilíbrio mensal de entre 7.000 e 8.000 unidades. E de janeiro até 30 de junho, quando fechamos, não chegávamos a vender 8.000 unidades nem seis meses. Foi um duro golpe para uma empresa como a minha, que vivia unicamente das vendas.

Ficou impossível de sustentar. Começamos a consumir nossas reservas, nossas economias, e chegamos ao ponto em que já não havia mais o que queimar, nem para pagar salários, nem para comprar matérias-primas. Então, tomamos a triste decisão de fechar as portas.

SEM EMPREGOS – A parte mais difícil disso foi dizer que as pessoas perderiam seus empregos, é algo que não desejo nem ao pior dos meus inimigos. Dos 12 funcionários, 6 tinham mais de 30 anos de empresa —os outros tinham 18, 17, 15, 12 anos.

O que vem pela frente também é complicado, porque temos que juntar um monte de dinheiro para pagar as indenizações. Estamos colocando todo o nosso capital, que levamos 50 anos para construir, à venda para pagar os empregados, para que eles tenham ao menos algo em que se agarrar.

A verdade é que não vejo que a economia argentina irá se recuperar. Cerca de 70% do emprego no país é gerado pelas pequenas e médias empresas, que estão sendo maltratadas por este governo: usando desde regimes de incentivo para grandes investidores externos —que vão vir competir de forma totalmente desleal— até com a profunda recessão em que se encontra o país e a consequente falta de vendas.

UM NOVO 2001 – Não sou otimista com o futuro econômico e isso nem é o que mais me preocupa. Temo que venha uma destruição do tecido social que pode nos colocar em um novo 2001. Do fundo do meu coração, tenho medo de que novamente voltemos a ver as imagens que tanto doeram aos argentinos.

Sinto que somos invisíveis. Não tenho o telefone de ninguém, imagine, estou em um povoado pequeno. Mas pelo X, como se chama o Twitter agora, tentei falar com pessoas de todo o amplo espectro da política argentina. A verdade é que a ninguém interessou a história e isso também me preocupa.

Deste governo não espero nada, mas que ninguém tenha ligado para oferecer uma mão, me preocupa muito. Mas essa é a história deste país. A política está cuidando de seus privilégios e quem trabalha está sobrevivendo mal.”


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