Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado/Arquivo
O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ)29 de julho de 2024 | 18:00Receita sob Bolsonaro abriu investigação com base em ‘ilações’ da defesa de Flávio, diz Fisco
A Receita Federal elaborou um parecer em que afirma que, durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), o órgão abriu uma investigação a pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PL) apenas com base em “ilações desprovidas de fundamento jurídico e sem nenhuma evidência ou prova objetiva”.
O documento, produzido pelo Grupo Nacional de Pareceristas do Fisco, e ao qual a reportagem teve acesso, foi feito a pedido da corregedoria do órgão após o STF (Supremo Tribunal Federal) tornar pública na semana passada a íntegra da reunião que Bolsonaro chefiou no Palácio do Planalto, em agosto de 2020, para tratar da suspeita de “rachadinha” que pairava contra o filho.
Na ocasião, tentou-se buscar meios de provar a hipótese de que Flávio havia tido seus dados fiscais acessados de forma ilegal pelo Fisco, o que seria a origem das investigações contra ele. Com isso, seria possível anulá-las.
Além do então presidente da República, participaram do encontro duas advogadas de Flávio (Luciana Pires e Juliana Bierrenbach —essa última não defende mais o senador), o então diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Alexandre Ramagem, e o então ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), Augusto Heleno.
“Não há nenhuma novidade no áudio liberado pelo STF em relação à Corregedoria da Receita Federal do Brasil, tendo sido demonstradas, de maneira fundamentada e motivada, a precariedade e a absoluta ausência de provas por parte das advogadas no que se refere às acusações e ilações por elas elaboradas”, diz o documento elaborado pelo grupo de pareceristas, em sua conclusão.
O enredo público dessa história começou em dezembro de 2018, quando o jornal O Estado de S. Paulo revelou um relatório produzido pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) indicando movimentação financeira atípica de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio.
A suspeita de que Flávio havia se apropriado de salário de seus funcionários na Assembleia surgiu no momento em que o pai já estava eleito, mas ainda não havia tomado posse.
Reportagens e investigações posteriores mostraram que, após assumir, houve mobilização do presidente da República e seu entorno para tentar anular a investigação.
A reunião de agosto de 2020, tornada pública pelo STF na semana passada no âmbito das investigações da suposta “Abin paralela”, é um exemplo.
Ela resultou em um pedido feito pela defesa do senador para que a Receita realizasse uma apuração especial no Serpro —o órgão que detém os dados do Fisco— para descobrir se alguém havia acessado os dados de Flávio de forma ilegal.
A petição apontava ainda a existência de um suposto “manto de invisibilidade”, ou seja, a existência na Receita de senhas especiais de acesso que não deixariam rastros de quem as havia utilizado.
Documentos até então inéditos obtidos pelo jornal Folha de S.Paulo em 2022 mostraram que, após essa reunião, a Receita Federal negou o pedido de apuração no Serpro, mas mobilizou por quatro meses uma equipe de cinco servidores para apurar a acusação de origem ilegal da investigação contra Flávio.
A reunião de agosto de 2020 teve como consequência também um encontro no mês seguinte do próprio Flávio Bolsonaro com o então secretário da Receita, José Barroso Tostes Neto, na casa do senador.
A suspeita apresentada pela defesa de Flávio tinha como base alegações de auditores fiscais investigados por enriquecimento ilícito no Rio.
Esses servidores afirmavam ter tido dados acessados ilegalmente por dois órgãos da Receita no estado, que formariam uma organização criminosa com o intuito de perseguir desafetos —o Escritório de Corregedoria da 7ª Região Fiscal (Escor07) e o Escritório de Pesquisa e Investigação da 7ª Região Fiscal (Espei07).
Essas alegações dos auditores haviam resultado, inclusive, em abertura de processo de desfiliação contra os investigadores por parte do Sindifisco, o sindicato da categoria, que, até o final de 2021, era controlado por pessoas alinhadas à família Bolsonaro.
No atual documento preparado pela comissão de pareceristas, a Receita diz que os escritórios citados só têm competência de atuação sobre servidores do próprio órgão. “O Escor07 e a Coger [corregedoria] não investigaram e nem investigam políticos e/ou pessoas que não se enquadrem juridicamente no Estatuto dos servidores públicos federais”.
Registra ainda que 3 dos 4 servidores usados como exemplo em 2020 pela defesa de Flávio acabaram “demitidos por improbidade administrativa na modalidade de enriquecimento ilícito”.
Sobre o “manto de invisibilidade”, o texto assegura que “qualquer acesso aos sistemas e bancos de dados fiscais possui registros de quem efetuou o acesso e de quando foi realizado, independentemente de o servidor atuar na Corregedoria ou nos Escritórios de Pesquisa e Investigação”.
Sobre o processo de desfiliação do Sindifisco, diz que esse foi um instrumento usado pelos auditores investigados e pela então direção do sindicato para tentar macular as investigações sobre enriquecimento ilícito, e que acabou sendo arquivado.
Alvo da família Bolsonaro e do dossiê de Ramagem, o então chefe do Escor07, Christiano Paes Leme Botelho, acabou exonerado em dezembro de 2020. Então secretário da Receita, José Barroso Tostes Neto foi exonerado em dezembro de 2021, também em meio a pressão da família Bolsonaro.
Porém, apesar da negativa oficial relativa ao Serpro, a Receita solicitou uma devassa ao setor para tentar identificar investigações, entre outros, em dados fiscais de Bolsonaro, de seus três filhos políticos, de suas duas ex-mulheres e da primeira-dama, Michelle.
A pesquisa custou R$ 490,5 mil à Receita, pagos ao Serpro. A defesa de Flávio disse não ter tido acesso ao resultado dessa apuração, que não surtiu resultados em prol de Flávio.
A investigação da rachadinha acabou sendo barrada, mas por outros motivos.
Depois de ter sido tirado da primeira instância, o caso teve todas as decisões que haviam sido tomadas nessa instância anuladas pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) em 2021.
OUTRO LADO: EX-ADVOGADA DE FLÁVIO DIZ QUE APRESENTOU PROVAS E QUE RELATÓRIO DA RECEITA É PARCIAL
A advogada Juliana Bierrenbach afirmou que o parecer do órgão da Receita não pode ser considerado imparcial, “pois é proveniente do próprio órgão acusado de práticas ilícitas”.
“A defesa do senador Flávio Bolsonaro apresentou, em 2020, provas incontestáveis de que grupo de auditores fiscais lotados na Corregedoria realiza buscas sistemáticas nos bancos de dados da Receita, utilizando acessos não rastreáveis”, disse a advogada, que não mais trabalha para o senador.
Ela afirma que as provas foram produzidas por investigação feita pelo Sindifisco e confirmadas em parecer elaborado pelo Conselho de Árbitros do Sindicato, “órgão este, sim, imparcial”, o que só não teria resultado na desfiliação dos servidores por pressão de órgãos como o Ministério Público e a Controladoria-Geral da União.
“Deixo claro que os acessos ilegais são ‘permitidos’ pela Portaria nº 79 de 2013, o que representa uma grave violação dos direitos fundamentais dos contribuintes brasileiros. Os funcionários da Receita Federal abusam do direito de utilizar esses acessos, sem que contribuintes ou advogados tenham conhecimento dessa possibilidade”.
Bierrenbach cobrou ainda que a Receita torne pública a apuração especial feita pelo Serpro.
“Apenas com a divulgação deste relatório será possível verificar se realmente não ocorreram acessos imotivados aos dados do senador Flávio Bolsonaro e de sua família. E, ainda que não se comprovem acessos imotivados neste caso específico, reitero a existência de práticas ilegais recorrentes de acessos imotivados a dados de contribuintes, conforme já comprovado judicialmente em outros processos”.
A reportagem não conseguiu falar com a advogada Luciana Pires nesta segunda-feira (29).
Ranier Bragon/FolhapressPoliticaLivre