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sábado, agosto 06, 2022

Voto nulo não é pecado




Quem cogita votar nulo é alvo de uma pressão que às vezes se assemelha ao bullying. Quem tenta dissuadi-lo em geral está preocupado com a possibilidade de seu candidato preferido perder a eleição no primeiro turno. 

Por Carlos Graieb (foto)

Nas próximas semanas, as pesquisas sobre anulação do voto devem crescer exponencialmente na internet. Esse tem sido o padrão na última década. Segundo dados levantados pela consultoria Bites, o volume de buscas sobre o tema, nos 45 dias que antecedem as eleições presidenciais, dobrou de 2010 para 2014 — e mais uma vez em 2018. Isso não significa que o número de votos nulos necessariamente vá explodir. Ele caiu de 7,3% do total, em 2002, para 5,6%, em 2006. Desde então, não teve saltos expressivos. A proporção foi de 6,1% em 2018. As abstenções, essas sim, cresceram muito: atingiram 20,3% do eleitorado em 2018, o maior índice do século. Mas pouco importa. Apesar de haver um desnível entre a tentação do voto nulo e a sua concretização, os eleitores que cogitam praticá-lo são alvos de uma pressão que às vezes se assemelha ao bullying.

O desejo de não entregar seu voto a nenhum dos candidatos que lideram as pesquisas pode ser tratado como um sinal de ignorância ou alienação; como uma falha de caráter, a exemplo da covardia ou da indiferença; e até mesmo como um pecado. Há religiosos, especialmente católicos, que fazem essa equiparação, com base em uma leitura exaltada da Doutrina Social da Igreja. Essa doutrina desencoraja os fiéis de ignorarem a política, dizendo que o cristão tem o dever de participar das questões de governo com sua opinião, sua palavra e suas ações. Mas não há documento oficial da Igreja dizendo que voto nulo é pecado.

Até no jargão do direito eleitoral está embutido um preconceito contra o voto nulo. Em livros teóricos e decisões judiciais, essa opção é chamada de “apolítica”. Segundo a assessoria de comunicação do TSE, o tribunal não tem posição institucional sobre o assunto, ou melhor, defende que cada cidadão deve votar com liberdade e de acordo com sua consciência. Ainda assim, a página de seu site dirigida aos jovens diz: “Não deixe de dar sua opinião! Não deixe que outras pessoas escolham por você. Seja parte da construção do futuro do Brasil!” Pode-se concluir, portanto, que para o TSE, quem decide votar nulo não tem opinião nem participa da construção do futuro do país. Crusoé pediu um posicionamento ao tribunal, mas não obteve resposta.

Não. O voto nulo é uma opção individual legítima. Ele nasce da rejeição aos candidatos que lideram as pesquisas ou representa um protesto. Nada tem de apolítico. Quem tenta dissuadir o eleitor de abandonar essa escolha pode não estar preocupado com a democracia ou qualquer outra abstração, mas com a possibilidade de seu candidato preferido perder a eleição já no primeiro turno.

A urna eletrônica não tem um botão exclusivo para o voto nulo, como no caso do branco. Para anular, o eleitor precisa digitar um número que não corresponda ao de nenhum político, como uma sequência de zeros, por exemplo. Há dúvidas e fake news a respeito dele. Uma das questões recorrentes é se, aplicado ao presidente, por exemplo, também anula as demais escolhas apresentadas na urna (as de deputado federal, governador e deputado estadual). “Isso não acontece”, diz o advogado Arthur Rollo, especialista em direito eleitoral. “O voto nulo vale só para aquele cargo. Se o eleitor fez escolhas para os outros cargos elas continuam válidas.”

A principal confusão sobre o voto nulo, no entanto, e aquela que os especialistas mais se esforçam para desfazer, diz respeito aos seus efeitos práticos. Há pelo menos vinte anos, antes de toda eleição, surge o boato de que, se os eleitores anularem seus votos em massa, a eleição como um todo pode ser invalidada, transmitindo uma mensagem poderosa ao sistema político. O voto nulo não tem esse poder. Quem insiste no contrário distorce a sua natureza, tanto quanto aqueles que desejam forçar o eleitor a escolher um candidato.

As toalhas da democracia: quem tenta dissuadir do voto nulo, tem medo que seu candidato perca no primeiro turno. O engano decorre da redação do artigo 224 do Código Eleitoral: “Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.”

O texto sugere que existe uma maneira de abortar uma eleição: conseguir que mais da metade dos votos seja nula. Em 2002, surgiu pela primeira vez um movimento tentando obter esse resultado. A ideia ganhou tração e fez, inclusive, com que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), então presidido pelo ministro Marco Aurélio Mello, deixasse a posição de neutralidade e fizesse campanha na direção contrária, incentivando o voto válido. Em seguida, o tribunal tratou de firmar uma interpretação do artigo 224 que afastasse de uma vez a hipótese de que o número de votos inválidos pode anular as eleições.

Essa interpretação diferenciou votos nulos dos eleitores e votos anulados pela Justiça Eleitoral, em razão da descoberta de que a eleição foi fraudada, que o vencedor era inelegível ou alguma outra ilegalidade. Só nessa segunda situação, se os votos anulados pelo tribunal forem mais de 50%, será preciso refazer as eleições.

Também foi levado em conta o artigo 77, parágrafo segundo, da Constituição. Ele diz que “será considerado eleito Presidente o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos”. Em outras palavras, os votos válidos de uma eleição são aqueles que restam depois da exclusão dos brancos e nulos. Assim, se 90% dos eleitores decidirem anular, o presidente será definido com base nos votos de Jair Bolsonaro 10%. Seu capital político será baixo, mas mesmo assim ele será o presidente.

Quanto menor for o universo dos válidos, mais aumenta a probabilidade de o candidato a presidente que estiver na liderança superar a meta de 50% deles, encerrando a disputa no primeiro turno. De maneira inversa, quanto mais votos válidos houver, e quanto mais distribuídos eles estiverem entre vários candidatos, maior a chance de haver segundo turno. “O número de votos válidos tem consequência práticas”, diz Arthur Rollo. “É por isso que diferentes grupos políticos combatem o voto nulo a cada eleição.”

A consultoria Bites corrobora a afirmação de Rollo. “Em 2018, quando Fernando Haddad, do PT, estava atrás nas pesquisas, a esquerda bateu muito na tecla de que era errado votar nulo”, diz André Eller, diretor da Bites. “Neste ano é o contrário. Com o presidente em segundo lugar, são os influenciadores bolsonaristas que mais agitam essa bandeira.”

É possível pinçar no twitter de Carlos Bolsonaro, por exemplo, mensagens sobre esse tema. Em abril, ao comentar as eleições na França, ele disse que “estimular o voto branco/nulo não é novidade alguma para os que se utilizam da política para se manterem no poder”. Segundo o filho 03, o voto nulo deveria ser chamado de “lulo” no Brasil, por beneficiar o petista. Em dezembro do ano passado ele já havia utilizado a expressão, a propósito de uma reportagem sobre o MBL, grupo que já apoiou Bolsonaro, mas hoje orienta seus integrantes a anular.

O argumento de Carluxo é que todo advogado do voto nulo é um lulista encoberto. Vale também para o outro lado. Em 2018, uma esquerda descabelada com a perspectiva de derrota chamava de “coniventes com o fascismo ou o autoritarismo” os eleitores que não topavam escolher entre Jair Bolsonaro e o PT, por acreditarem que os dois eram inaceitáveis.

Um segundo argumento é que, ao anular o voto, o eleitor deixa que outros escolham por ele. E com isso o sujeito se encaixa em um de dois grupos: ele pode ser um covarde, que não se compromete com uma escolha; ou ele é um “isentão”, que não se preocupa com o país nem com as pessoas à sua volta.

O defeito de todas essas críticas é serem reducionistas. Elas equiparam a participação política ao comparecimento às urnas, como se tudo o que acontece nos quatro anos que separam uma eleição presidencial de outra fosse irrelevante – e como se a discussão política não tivesse se intensificado e aumentado de volume muitas vezes nos últimos anos, por causa das redes sociais.

“O voto obrigatório já me parece uma aberração”, diz o filósofo Denis Rosenfeld. “Querer tirar do eleitor forçado a ir às urnas até mesmo o direito de recusar as opções que lhe ofereceram é ir longe demais. Voto nulo é o protesto de quem racionalmente não considera que aquelas alternativas são boas, ou pessoalmente não se reconhece naqueles candidatos. Está muito longe ser a mesma coisa que não ter opinião. Agora, o cidadão que prefere ser deixado em seu canto, que concluiu que a política não é a coisa mais importante da vida, também não pode ser coagido socialmente a votar, muito menos pelos políticos e pelo Estado. Como disse Benjamin Constant, ao cidadão deve ser dada a liberdade de fazer ou não política.”

Voto nulo, portanto, não é pecado, não é alienação, não é desprezo pela democracia. É, na maioria das vezes, uma afirmação política que precisa ser levada em conta. Uma afirmação válida.

Revista Crusoé

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