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quarta-feira, setembro 29, 2021

Mil e uma noites no poder




Ninguém pense que Bolsonaro está jogando a toalha. Apesar das dificuldades eleitorais, não se sente estrategicamente derrotado. Constrói um cenário imaginário

Por Luiz Carlos Azedo (foto)

Os 1.000 dias do governo Bolsonaro foram comemorados pelo governo sem muita pompa, não houve nenhuma entrega espetacular para marcar a data. Afinal, são 600 mil mortes por covid-19, 14 milhões de desempregados e 35 milhões de brasileiros na miséria. “Nada não está tão ruim que não possa piorar”, disse o presidente Jair Bolsonaro, agourento, durante a efeméride no Palácio do Planalto. Diante de ministros e parlamentares, arrematou: “Alguém acha que eu não queria a gasolina a R$ 4? Ou menos? O dólar R$ 4,50 ou menos? Não é maldade da nossa parte. É uma realidade. E tem um ditado que diz: ‘Nada não está tão ruim que não possa piorar’. Nós não queremos isso.”

Lembrei-me de uma passagem de um clássico da literatura universal, As Mil e Uma Noites (Editora Brasiliense), uma coletânea de histórias de origem persa narradas por sua principal personagem, a princesa árabe Xerazade, esposa do rei Xariar. “Você vai morrer!”, disse o monarca, “você morreria nem se fosse apenas para eu ouvir sua cabeça falar depois de separada do corpo”.

Suspeito de espionar, o médico Dubane fora condenado à morte, porém, antes da execução, desafiou o monarca a ler um livro que faria sua cabeça decapitada falar. O rei caiu na armadilha e começou a ler as páginas do livro, molhando o dedo na própria saliva para separá-las. A cabeça amaldiçoada esperou o veneno fazer efeito e, antes do rei morrer, declamou:

Eles julgaram a seu modo
E se acumpliciaram nesse trabalho
Dentro em pouco, seu poder parecerá que
nunca existiu
Poderiam ter permanecidos justos e puros
mas abusaram do poder
e o mundo por seu turno os oprimiu
assim como a adversidade e a provação
Ei-los vivendo na miséria. Seu presente
É tão-somente o fruto do seu passado.
Quem censurará o mundo
Por tratá-los assim.

O poema ajuda a entender a derrocada de governos, regimes e até civilizações. Não é o caso ainda do governo Bolsonaro, ao completar 1.000 dias, mas é o seu rumo atual. Na última sexta-feira, o preço médio da gasolina era R$ 6,09, mesmo subsidiada pela Petrobras. Ontem, o dólar estava cotado a R$ 5,37. O Imperador brasileiro Dom Pedro II soube bem o que é isso. Foi o primeiro a traduzir diretamente As Mil e Uma Noites para o português, com rigor raro para a época. Aos 62 anos, pouco antes da Abolição e da Proclamação da República, começou o trabalho. O último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte em Paris, no exílio. Não conseguiu concluir a obra.

Ao passado

Entretanto, ninguém pense que Bolsonaro está jogando a toalha. Apesar das dificuldades eleitorais, não se sente estrategicamente derrotado. O seu discurso de ontem, ao se referir à facada que levou na campanha de 2018, constrói um cenário imaginário no qual a eventual vitória de seu adversário principal nas eleições de 2018, o ex-ministro da Educação Fernando Haddad (PT), faria com que a situação fosse muito pior: “É só imaginar quem estaria no meu lugar. O perfil dessa pessoa, o seu alinhamento com outros países do mundo, em especial aqui na América do Sul. Onde nós estaríamos agora?”, indagou. Obviamente, a comparação é com a Venezuela: “Você já sabe qual o filme do futuro porque você viveu 14 anos passados esse filme. E pode ter certeza, não serão apenas mais 14 anos. Serão no mínimo 50. É isso que queremos para a nossa pátria?”

Bolsonaro administra mal o próprio tempo, o recurso mais escasso de seu mandato. Governa para os seus, olhando sempre para trás. Constrói um cenário político que lembra um pouco a disputa de 1950, na qual Getulio Vargas voltou à Presidência pelo voto. Naquela campanha, o líder da UDN, Carlos Lacerda, que mais tarde seria governador da antiga Guanabara, dizia que Vargas não poderia ser candidato; se fosse candidato, não deveria ganhar; se ganhasse, não deveria tomar posse; se tomasse posse, deveria ser derrubado.

Lacerda foi um opositor implacável, mas sofreu um atentado, na Rua Tonelero, em Copacabana, onde morava, sendo ferido na perna. No episódio, morreu o major Rubens Vaz, seu amigo, que cuidava da sua segurança. O envolvimento de Gregório Fortunato, chefe da segurança pessoal do presidente, no crime, e de Benjamin Vargas, seu irmão, encurralou e levou Vargas ao suicídio, em 24 de agosto de 1954. A analogia serve para mostrar que a atual polarização política não se resolverá na eleição. Deixou de ser eleitoral: é mais profunda e, tudo indica, veio para ficar.

Correio Braziliense

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