Marcelo Rocha e Constança Rezende
Folha
A chegada de Jair Bolsonaro à Presidência em 2019 marcou uma guinada nos negócios de uma empresa ligada a Daniel Beck, apoiador militante do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump que esteve em Washington durante a invasão ao Congresso americano, em janeiro passado.
Registros obtidos pela Folha mostram que, em janeiro de 2019, começo do governo Bolsonaro, Daniel e familiares mudaram o objeto social de sua empresa nos EUA, de prestação de serviços de publicidade para negócios voltados à área de segurança no Brasil.
MILHÕES DE REAIS – Surgiu, assim, a Combat Armor Defense, que hoje atua com blindagem e venda de veículos e já firmou alguns milhões de reais em contratos com o governo federal. Entre os clientes estão a Polícia Rodoviária Federal e o Ministério da Defesa.
A aposta no Brasil foi alta. O principal responsável pela empresa no país disse à Folha que no início de 2020 procurou em Brasília um dos filhos de Bolsonaro para fazer lobby. Segundo o relato, ele foi à Câmara e “pediu apoio” ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o filho do chefe do Executivo mais ligado aos trumpistas. Eduardo não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem ao seu gabinete.
Beck, o presidente da Combat Armor, ganhou destaque após viralizar nas redes sociais um vídeo em que afirmou ter se reunido com Rudolph Giuliani, advogado de Trump, e com o empresário Michael Lindell, conselheiro do ex-presidente, na véspera do ataque ao Capitólio.
ENCONTRO COM EDUARDO – Em outra gravação, no dia da invasão, Lindell mencionou ter tido um encontro com “o filho do presidente do Brasil” na noite anterior. Eduardo estava em Washington naquele momento.De acordo com documentos do governo do estado americano de Idaho, a empresa de Daniel foi criada em 2011 com o nome de Ad Faction, Inc. Oito anos mais tarde, após um período de inatividade, foi resgatada com o nome de Combat Armor Defense.
Em março de 2019, após cumprir algumas formalidades, a empresa se instalou no Brasil. Em seguida, começou a construir uma fábrica em Vinhedo, em São Paulo. Beck chamou Maurício Junot de Maria, empresário brasileiro que já atuava no setor, para ser administrador.
Os negócios da empresa começaram a deslanchar a partir de 2020. Abriu uma filial no Rio de Janeiro e colocou superintendentes no Paraná, Espírito Santo e outro encarregado para o Nordeste. Após vencer pregões para o registro de ata de preços junto à Polícia Rodoviária Federal no Rio, a Combat Armor assinou com a corporação três contratos para blindagem de veículos, no valor total de R$ 8,3 milhões, todos atualmente em execução e já empenhados, segundo nota enviada pela assessoria da PRF.
DISPUTA NA DEFESA – Ganhou também disputa no Ministério da Defesa para o fornecimento de veículo de representação blindado por R$ 273 mil e foi vencedora de licitação da Polícia Militar do Rio de Janeiro para aquisição de veículos blindados para transporte de pessoal. Um contrato já foi assinado com a corporação no valor de R$ 9 milhões.
O dono de uma empresa brasileira conhecida do setor, que competiu com a empresa de Beck em um desses pregões, disse à Folha ter ficado surpreso com o sucesso repentino da concorrente, uma empresa tão nova e com fábrica recém-aberta.
NA “CARA DE PAU” – Em conversa com a reportagem, Junot de Maria, que se apresenta como CEO da Combat Armor, afirmou que procurou Eduardo Bolsonaro na Câmara no ano passado para apresentar a empresa. “Foi há mais ou menos um ano. Fui na cara de pau”, afirmou. “Bati na porta [do gabinete]. Ele estava lá por um acaso e me apresentei.” “E falei pra ele: ‘senhor Eduardo, tudo bem? Eu tenho uma empresa que faz isso e isso. Eu gostaria de um apoio teu’.”
Apesar do alegado pedido de apoio ao filho 03 de Bolsonaro, Junot não conseguiu explicar de que maneira o parlamentar poderia ajudá-lo. “Licitação é licitação. Não tem jeitinho, não tem camaradagem, não tem facilidade. É pregão eletrônico. Quem oferecer o melhor preço, leva. Ganhei umas e perdi outras.”
Junot disse que a conversa com o deputado durou cinco minutos, oportunidade em que apresentou a Eduardo um dos produtos desenvolvidos pela empresa. “Uma tinta blindada, que pode ser útil para um monte de coisas. Ele ficou com uma amostra, mas nunca me ligou de volta.”
APARTIDÁRIO – O responsável pela Combat Armor no Brasil disse que os negócios da empresa não têm qualquer relação com a política e que “não é partidário”.Segundo Junot, Daniel Beck nunca conversou com Bolsonaro ou seus filhos, e as posições políticas do americano não têm relação com os negócios da Combat Armor. “Isso é briga dele com o pessoal lá [democratas, opositores de Trump].”
Beck viveu em Brasília entre 1999 e 2002 para uma missão da maçonaria e circulou pelos estados de Mato Grosso, Tocantins e Goiás. Após Bolsonaro se eleger presidente, Beck voltou algumas vezes ao país. Em outubro de 2019, ele tirou fotos com carros da PM do Rio. No ano passado, esteve no Brasil duas vezes: em fevereiro, quando visitou sua fábrica e posou ao lado de viaturas da Polícia Rodoviária Federal, e em outubro.
No Facebook, ele se identifica como CEO da Txtwire, empresa que desenvolve software para envio de mensagens de texto em massa e gerenciamento de campanhas de marketing. Seu perfil é lotado de vídeos e propagandas de Trump.Junot disse que em 2018 ofereceu a Beck e seus familiares uma oportunidade de negócios no Brasil. “Mas não tem nada a ver com a chegada de Bolsonaro ao poder, se fosse governo Lula também ofereceria o mesmo negócio.”
OPORTUNIDADE – Em novembro do ano passado, porém, em entrevista à revista Quatro Rodas, Junot afirmou que previu novas políticas de segurança pública no Brasil e uma boa oportunidade de voltar e fornecer material às forças estaduais a partir das eleições de 2018. A portaria nº 94 do Exército, publicada em agosto de 2019, facilitou o processo de blindagem de viaturas.
O administrador brasileiro da Combat Armor disse que passou mais de uma década fornecendo soluções de blindagem às Forças Armadas dos EUA durante a Guerra do Iraque. Sobre a hipótese de interferência política na escolha da Combat Armor, o Ministério da Defesa informou, em nota, que o processo licitatório “cumpriu exclusivamente os requisitos legais e técnicos”.
PREGÃO ELETRÔNICO – O A Polícia Rodoviária Federal, por sua vez, disse que uma licitação “prevê cadastramento das empresas por intermédio do SICAF/Comprasnet [ferramenta do governo federal para a realização de licitações], onde todo o procedimento é feito por meio eletrônico e com apresentação de propostas em pregão eletrônico aberto a qualquer empresa que queira participar”.
A assessoria de imprensa da PM do Rio de Janeiro afirmou que na licitação vencida pela Combat Armor “cumpriu-se todos os preceitos técnicos” contidos na legislação e “demais normas pertinentes ao assunto”. Disse ainda que a empresa venceu a seleção, “após a inabilitação de uma empresa concorrente por descumprimento das qualificações técnicas e econômico-financeiras exigidas no edital”.