Publicado em 8 de abril de 2021 por Tribuna da Internet
Demétrio Magnoli
Folha
A história pode ser contada a partir de uma quinta-feira 12, em novembro do ano passado, quando o comandante do Exército, general Edson Pujol, disse em palestra que os militares da ativa devem ficar fora da política. Na sequência, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, divulgou nota coassinada pelos três comandantes militares reafirmando as palavras de Pujol, mas ressalvando que elas não destoavam “do entendimento do presidente da República”. A demissão coletiva dos comandantes, dias atrás, impugna o intento de uma conciliação impossível.
Os eventos do final de 2020 são marcos secundários numa história mais antiga que deve ser narrada a partir de agosto de 2015, quando uma chusma de apoiadores do então deputado Jair Bolsonaro montou acampamento diante do Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, para pedir “intervenção militar constitucional”.
VILLAS BÔAS IRONIZOU – Na época, o general Villas Bôas, então comandante do Exército, que trafegava diante das barracas do autointitulado Posto Revolucionário 1 no trajeto para sua residência, ironizou a demanda: “Quero entender como se faz”. Nos anos seguintes, a ironia secou, dando lugar à aventura da adesão de um grupo de generais à candidatura de Bolsonaro.
A separação entre a política e os quartéis nunca fez sentido para Bolsonaro. O capitão desordeiro, excluído do Exército, fez carreira política baseada no elogio do regime militar e organizou sua candidatura presidencial em torno da ideia do fracasso da democracia.
No Planalto, estimulou a anarquia militar, chegando a patrocinar um ato subversivo diante do Quartel-General do Exército, em Brasília, e alimentando um projeto de intimidação do Congresso e do STF. O Plano A do presidente jamais foi a reeleição.
SINTÉTICO MANIFESTO – Fernando Azevedo produziu, na sua carta de demissão, um sintético manifesto antibolsonarista: “Preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”. As coisas, porém, só chegaram ao ponto da ruptura por culpa de três generais que esqueceram as lições aprendidas por duas gerações de altos oficiais militares.
O vírus da anarquia militar, traço estrutural das repúblicas caudilhescas latino-americanas, chegou ao Brasil com atraso, mas deitou fundas raízes, pontilhando nosso século 20 com pronunciamentos, levantes e golpes. A era da anarquia durou até o outono da ditadura, quando as cúpulas das Forças Armadas começaram a erguer uma muralha entre os militares e a política.
A Constituição é a única ordem legítima —o novo lema, repetido à exaustão, restaurou a imagem dos homens em uniforme e estabilizou o sistema democrático.
DECISÕES INSANAS – Contudo, diante do colapso do governo Dilma Rousseff, três icônicos generais lideraram uma volta ao passado. Villas Bôas articulou a célebre nota destinada a intimidar o STF. Hamilton Mourão aceitou a candidatura à Vice-Presidência. Augusto Heleno ingressou no governo Bolsonaro, levando com ele uma coleção de altos oficiais. A crise militar em curso é o fruto inevitável daquelas decisões insanas.
Os três generais não sabiam o que faziam. O projeto deles era dirigir o leme de um governo conservador, ordeiro, eficaz, responsável, livre da corrupção política que envenenou a Nova República.
VALIDAÇÃO DE 1964 – Seria, imaginaram, a validação histórica do golpe de 1964 e, portanto, a remoção definitiva de uma mancha de desonra.
A realidade, porém, dissolveu tais ilusões: os 6.000 militares, da reserva e da ativa, que ocupam cargos no governo oferecem amparo tácito ao presidente-agitador empenhado na quimera da “intervenção militar constitucional”.
Disciplina e obediência são valores supremos no manual de conduta das Forças Armadas. Ironicamente, para fortuna dos militares que aderiram a Bolsonaro, os comandantes da ativa optaram pela disciplina da desobediência. Diante da encruzilhada, disseram “não” ao comandante-em-chefe, batendo continência à Constituição.