Leandro Prazeres
O Globo
O “globalismo”, controverso conceito usado pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, passou, oficialmente, a fazer parte do curso de formação de diplomatas do Instituto Rio Branco, vinculado ao Itamaraty. O GLOBO analisou as ementas dos cursos ministrados entre 2009 e 2020 e constatou que os termos “globalismo” e “globalista”, denotando uma suposta conspiração global para acabar com a soberania dos países, entraram na grade curricular dos futuros diplomatas a partir de 2019, primeiro ano da gestão de Araújo no comando do Itamaraty.
A formação acadêmica dos diplomatas brasileiros voltou a chamar atenção na semana passada depois que o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que colocou o Instituto Rio Branco diretamente subordinado ao chanceler. Antes, o comando do órgão, responsável pelos concursos e formação dos diplomatas, ficava sob a estrutura da Secretaria de Comunicação e Cultura do Itamaraty.
COM VIÉS NEGATIVO-Usado até meados do século passado, sobretudo em países de língua inglesa, para designar uma visão de mundo que vai além das fronteiras nacionais, o termo “globalismo” ganhou um viés negativo na boca de ideólogos do nacional-populismo, incluindo Olavo de Carvalho, uma das principais influências intelectuais de Araújo.
Nesse sentido, o globalismo seria uma espécie de ideologia por trás de um suposto plano para reduzir o poder de governos locais e instituir um tipo de “ditadura global”. Esse “plano” seria apoiado por bilionários de todo o mundo, como o megainvestidor e filantropo George Soros, e por políticos de esquerda ou classificados como “progressistas”.
Entidades internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e suas agências, além de outras instituições multilaterais e organizações não governamentais, seriam braços dessa suposta conspiração.
NO BLOG DE ARAÚJO – O termo é atualmente usado por radicais de direita para fazer sua própria crítica ao processo de globalização. O blog que Araújo mantém na internet traz o termo no título: “Metapolítica 17 – Contra o globalismo”.
No mundo acadêmico e no Itamaraty, o termo globalismo e a tal “conspiração globalista” nunca foram considerados relevantes, mas o assunto ganhou força com a chegada de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos e, depois, com a eleição de Jair Bolsonaro e a chegada do grupo de Ernesto Araújo ao comando da política internacional do país.
Isso se refletiu no conteúdo pedagógico usados na formação dos futuros diplomatas formados pelo Instituto Rio Branco, vinculado ao Ministério das Relações Exteriores (MRE).
NA ERA BOLSONARO – O GLOBO analisou as ementas de cursos oferecidos pelo instituto desde 2009. A primeira vez que o termo “globalista” aparece no conteúdo pedagógico do órgão foi em 2019.
Na ementa do curso de formação de diplomatas de 2020, já há cinco menções ao termo “globalista”. Elas aparecem na ementa das disciplinas “Defesa, segurança e política externa” e “Política internacional I e II”. Na primeira, a ementa cita o termo para estudar a atuação dos Estados Unidos na política internacional durante o governo Trump.
Na ementa da disciplina Política internacional I para 2020, o termo globalista aparece no planejamento de uma aula sobre o atual momento da diplomacia brasileira. O plano de aula previa que os alunos debatessem as causas da eleição de Trump. A aula é no formato de debate em que os estudantes precisam analisar algumas premissas e discuti-las.
“AVANÇO DEMOCRÁTICO” – As duas premissas em questão eram, primeiro, se a eleição de Trump foi um “acidente de percurso, causado por ingerências externas, pelas ‘fake news’ e pelo machismo” ou, contrariamente, se representou um “avanço democrático importante, uma vez que parcela considerável da população, até então excluída do debate político pela hegemonia globalista, finalmente se fez ouvir”.
O pesquisador e professor de Relações Internacionais Dawinsson Belém Lopes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que o globalismo na concepção utilizada por Olavo de Carvalho e discípulos como Ernesto Araújo não é um conceito tido como relevante pelo mundo acadêmico.
“Essa ideia de uma megaconspiração marxista para tomar o mundo de assalto não encontra guarida nas principais academias. É uma coisa muito de gueto, de nicho. É uma ideia muito peculiar que acabou sendo transplantada para o Brasil” — afirmou.
FORA DO CONTEXTO – “Não é algo que conste no mainstream da teoria das Relações Internacionais nessa forma como é apresentada pelo grupo do Ernesto — explica Belem Lopes.
A reportagem enviou questionamentos sobre o assunto para a assessoria de imprensa do Itamaraty, mas até o fechamento desta reportagem, nenhuma resposta foi recebida.