Saudade de Maria João só não supera indignação pelo abandono do famoso imóvel
Alexandre Lyrio
A neta medita sobre os dizeres impressos na bancada do quintal e tem a certeza de que o avô, de uma forma ou de outra, está ali: “Nesse recanto de jardim, quero repousar em paz quando chegar a hora. Eis meu testamento”. No exato local em que estão depositadas as cinzas do escritor Jorge Amado, sob o pé de uma mangueira, a saudade de Maria João só não é maior que a indignação. Ao adentrar a casa em que viveu os primeiros 20 anos de sua vida, mergulha em pensamentos contraditórios. Divide-se entre o fantasioso passado, majestoso e imponente, e o presente de decadência e ruínas.
A casa do Rio Vermelho sucumbe ao descaso. O lugar que abrigou todo o acervo pessoal do maior escritor baiano está jogado às traças e cupins, bem diferente do que Maria João deixou. Num primeiro instante, lembra-se da menina manhosa e faceira, que escondia-se no forro do teto para ouvir a conversa dos adultos. Depois, as alegres reminiscências são interrompidas pelas imagens de destruição. A neta de Jorge Amado atenta para a força das raízes de um jambeiro, que ergue o piso da sala e faz rachar as paredes. Um flamboyant também levanta o chão da varanda que dá acesso ao enorme quintal.
O local, aliás, ainda abriga espécimes das mais diversas. As frutíferas pitangueiras, ingás, jaqueiras e pés de sapoti, dividem espaço com um sagrado iroco, árvore ancestral onde se oferendam as comidas de alguns orixás nos terreiros de candomblé. Maria passeia pelo jardim, o seu jardim de infância onde dependurou-se nos cipós e enfeitiçou-se com a roseira de rosas verdes da avó, Zélia. O lugar perdeu a aparência limpa e exuberante. Tomado pelo matagal, ganhou o mesmo aspecto carrancudo de toda a casa. A única coisa nova ali é o telhado. “Colocamos telhas novas de forma emergencial. Senão o que tinha dentro ia se acabar”.
Quase tudo de grande valor foi retirado da casa. A família preferiu guardar os materiais em local seguro, onde pudesse se iniciar o processo de restauração. Mas ali ainda existem verdadeiras relíquias, peças que não podem ser removidas por estarem incrustadas nas paredes. “Meu avô tinha a mania de embutir no concreto as peças que ganhava de presente. Este material não dá para ser retirado”, explica Maria João. Fixado na alvenaria, um colorido quadro de Pablo Picasso destaca-se entre centenas de obras.
Arte - A casa, apesar de decadente, é impregnada de arte. As salas de estar e jantar dividem-se por um gradeado de ferro esculpido por Carybé. O amigo artista plástico, aliás, espalha-se por quase todos os cômodos. Está nas esculturas em metal, pinturas e azulejos de decoração. Os mesmos azulejos brancos, com figuras azuis, envolvem a armação de concreto da cama de casal em que Jorge e Zélia sonharam os personagens de seus livros. Enquanto isso, desenhos estilizados de Calasans Neto, o amigo Calá, estão reservados em um quarto dos fundos, onde estão colocadas as gravuras originais utilizadas no livro Tereza Batista, cansada de guerra.
O único segurança que protege o casarão criou afeição ao lugar e vínculo à família. Toda segunda-feira coloca oferenda aos pés do Exu, talhado em ferro por Carybé e fincado no chão do quintal entre as árvores. “Você está dando a cachaça do Exu, seu Taciano?”, pergunta a neta Amado. “Claro dona Maria. Se não der, ele fica bravo”, respondeu o vigia, que, há quatro anos, é guardião da casa do Rio Vermelho, junto com o Exu. Trabalha sem ter a noção exata do patrimônio que toma conta, mas ultimamente tem viajado em fantásticas histórias sobre a Bahia. “Ganhei dois livros autografados por dona Zélia. Estou nas primeiras páginas”, orgulha-se.
A possibilidade de transformar tudo aquilo em memorial de visitação empolga a neta. A casa do Rio Vermelho já foi destino de turistas de todo o mundo. Ainda hoje, caravanas de outros países têm o casarão no roteiro turístico, mas encontram as portas fechadas. “A demanda de visitação é grande. Mais que um museu, isso aqui poderia ser um centro de cultura”, vislumbra Maria João. Os projetos de financiamento para reforma estão atravancados, esbarram na falta de vontade política.
O último plano, aprovado no Ministério da Cultura, prevê a destinação de R$3,5 milhões para reerguer o patrimônio, mas ainda não encontrou fonte de financiamento. Maria acredita que a verba pode vir do exterior, onde o avô é devidamente valorizado. “Queremos deixar essa casa exatamente do jeito que ela era. É o mínimo que pode ser feito”.
Fonte: Correio da Bahia
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