Sérgio Couto, advogado
Promulgada em meio a fanfarras, a Carta de 1988 trouxe auras de modernidade e criou normas que inflaram de orgulho o peito dos brasileiros de boa fé. No papel, assegurava garantias próprias de cidadão primeiro-mundista. Na prática, um amontoado de boas intenções, inviáveis objetivamente.
E o que temos hoje? Um Estado pantagruélico, insaciável, voraz, que exige de seu cidadão carga tributária inédita e fantástica. Há quem diga que trabalhamos quatro meses ao ano só para pagar o fisco famélico. E o que a máquina estatal devolve aos cidadãos?
Saúde? A saúde pública, "quase às portas da perfeição", como a qualificou o inefável dircurseiro que ocupa a Presidência da República, a saúde é a eterna órfã. Sucateada, hospitais sujos, filas enormes, gente morrendo à míngua de assistência. Quem quer algo melhor, tem de pagar um plano privado. Logo, saúde não há.
Educação? O sistema educacional implantado no pós-64 é brutalizador e alfabetiza mal as pessoas. Forma, num mecanismo perverso, seres incultos - isso sem falar na proliferação indiscriminada de cursos superiores particulares, que são verdadeiros caça-níqueis. Ensino superior público? Vai mal, obrigado.
Transporte? Se o cidadão quer estradas, tem de pagar pedágio. Aquelas mantidas pela União, Estados ou municípios, são intransitáveis. As ferrovias foram eliminadas por uma política estatal que prioriza a indústria automobilística. O transporte aéreo? Precisa falar sobre Anacs, Infraeros e outros cabides de emprego inteiramente inúteis, que geraram o caos aéreo, devido tão-somente à incúria governamental?
Segurança? O leitor acaso sabe o que é isso? Recentemente, uma grande parte do efetivo de um batalhão da Polícia Militar foi posto sob chave, porque participava do crime organizado. Não dá nem para clamar pela polícia, porque pode aparecer mais um bandido. E os policiais honestos, felizmente a maioria, não dispõem de armas, transporte, salários decentes. Enfim, são uns pobres coitados que andam sobre o fio de uma navalha, no sério dilema de enfrentar a cada dia um combate pela própria sobrevivência. E, quando escapamos ao fim de cada dia, do assaltante de plantão, não escapamos do saque organizado que é o assalto diário ao erário público, praticado por políticos e administradores que vivem da propina e dos contratos superfaturados.
Forçoso concluir, então, que a única retribuição pelos nossos tributos é a certeza de que pagamos uma nomenklatura burocrática que se organiza para saquear o país.
Enquanto isso, só no Centro do Rio, a população de rua cresce 12,4%. Velhos, crianças, mulheres que não têm para onde ir e que, à sombra das marquises, dormem e fazem suas necessidades fisiológicas. A Constituição só existe para lembrar os deveres do cidadão e as prerrogativas dos que violam a lei.
Quem, valendo-se dos direitos constitucionais, recorre ao Judiciário, esbarra nas impossibilidades de responsabilização do poder público. Quem, por exemplo, morre na rua, nas mãos de um criminoso ou de balas perdidas, não espere que o Judiciário atribua ao poder público a obrigação de indenizar pela falta de segurança. Quem teve a vida de um ser querido ceifada pelos maus-tratos dos hospitais públicos não espere que o juiz determine que o governo indenize a falta de políticas de saúde. Tudo porque, se adotasse tal orientação positiva, o Judiciário simplesmente quebraria o poder público. Que, como não age, multiplicaria os casos de indenização. É a história do cão mordendo o próprio rabo.
Possível dizer, então, que a Carta Cidadã de 1988 é um exercício de utopias.
Resultado: a maioria dos brasileiros perdeu a confiança nas instituições e órgãos públicos. Este é o resultado de pesquisa divulgada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Seu presidente, Rodrigo Collaço, destacou que a intenção ao promover a pesquisa era mostrar a necessidade de uma reforma política e, para isso, era preciso avaliar a credibilidade das instituições - conforme destacou o JB, em 28 de setembro.
Fonte: JB Online
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