Por: Mauro Santayana
Não é preciso ler Montesquieu para entender a necessidade da separação dos poderes do Estado. A idéia de base é a de que cabe aos representantes diretos do povo assumir a responsabilidade indelegável de legisladores. Não porque sejam os mais sábios membros da sociedade política, nem porque exibam excelsas virtudes. São os escolhidos pelo povo, o único e absoluto senhor da soberania. Em algumas situações históricas, as casas legislativas reúnem a excelência da sociedade, na conduta ética e na inteligência política. Em outras - e vivemos uma dessas pausas de desalento - a escolha pode não ser a melhor. Mas é a vontade do povo que legitima o Estado.
Os Estados nunca se encontram além da sua possibilidade; às vezes situam-se aquém de onde poderiam estar. A experiência nos mostra que somos uma grande nação. Mas o Estado encontra-se reduzido pela ação de uma elite que, em sua parcela mais poderosa, é predatória, arrogante e vassala. O que nos dá esperança é a resistência tenaz de grandes e valorosos brasileiros. O Brasil era um dos poucos países cujas condições econômicas e políticas permitiam reagir contra a substituição do Estado pelo mercado. Em nome da soberania do capital, o governo desmantelou o Estado e abandonou a busca da igualdade democrática fundada na igual oportunidade de todas as pessoas.
Isso se reflete nas instituições republicanas. O Congresso perdeu a iniciativa de legislar e, ao perdê-la, começou a perder a credibilidade da nação. Desde a Constituição de 1988 que os pensadores e atores políticos reclamam legislação eleitoral que dê mais legitimidade ao poder republicano. Na falta dessa reforma necessária, que limite o poder econômico, o Poder Judiciário se sente obrigado (com razões maiores, mas também com razões menores) a suprir a falta dos legisladores. É assim que se pode entender a resposta do Tribunal Superior Eleitoral à consulta no caso da fidelidade partidária e a conseqüente decisão tomada agora pelo Supremo Tribunal Federal.
Não obstante a fundamentação brilhante dos votos proferidos, a maioria do tribunal não conseguiu convencer a razão política de que os partidos são os procuradores da soberania do povo. No caso específico do Brasil, conforme a experiência já centenária, são as personalidades que fazem os partidos. Ainda nos encontramos naquela situação anterior à formação orgânica dos partidos europeus modernos, quando eles se organizavam em torno de um ou de outro barão. Não foi o Prona que elegeu o médico Enéas Carneiro, foi Enéas que fez o Prona. De quem são os votos de Clodovil, senão dele?
Ao Poder Judiciário cabe interpretar as leis e impor o seu cumprimento, embora haja quem conteste o direito, autoproclamado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, de "ler" a Constituição conforme a sua própria inteligência, no célebre voto de John Marshall em fevereiro de 1803. No caso, a sentença em si revelava o bom senso: entre uma decisão do Congresso e a Constituição, a Constituição prevalece. No julgamento do STF, há ainda dúvida de que a Constituição tenha estabelecido o partido político como portador absoluto da vontade popular. O voto, no Brasil, é nominal, não em lista partidária. Para um observador leigo, os argumentos sucintos e claros do ministro Eros Grau e de seu colega Ricardo Lewandovski, ao negarem o mandado, impressionaram mais do que as longas lições de direito constitucional de alguns de seus colegas.
Espera-se que este seja o último caso em que, a pretexto de suprir as normas legais, o Poder Judiciário legisle. Espera-se também que o Parlamento, na defesa de suas prerrogativas republicanas, passe a legislar
Fonte: Jornal do Brasil
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