Marcelo Godoy
Estadão
Leônidas Pires Gonçalves foi o homem que comandou a volta dos militares para os quartéis. Teve de lidar com os impulsos do Centro de Informações do Exército (CIE) que pretendia participar ativamente da guerra cultural que ele enxergava em torno da memória dos presidentes militares. Foi durante seu comando que se produziu o Projeto Orvil, um livro por meio do qual o CIE pretendia contar sua versão sobre a luta contra o comunismo e os comunistas.
Pronto o documento de quase 2 mil páginas, ele foi engavetado por ordem de Leônidas. Não era o caso de reviver feridas. O então comandante queria o Exército distante da política partidária em nome de sua profissionalização.
SEMPRE PERDIA – Leônidas Pires Gonçalves acreditava, como o general Góes Monteiro nos anos 1940, que a tropa sempre sairia perdendo quando se fazia a política dos partidos nos quartéis em vez de se levar aos partidos a política do Exército. A figura do primeiro comandante da Nova República está sendo recuperada nas casernas para explicar aos homens e mulheres o papel do atual chefe, o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva.
Generais ouvidos pela coluna consideram que o esforço de Tomás de afastar a Força Terrestre da contaminação ideológica dos anos da Presidência de Jair Bolsonaro é comparável ao de Leônidas.
O desafio foi abordado no artigo A espada de dâmocles e as lideranças militares, pelo general Otávio Rêgo Barros, o qual questionou como seria a transição para o governo civil se Leônidas tivesse de lidar com o “desassossego das redes sociais, com memes grotescos, vilipêndio de adversários e notícias mentirosas”.
ALGO MUDOU – Rêgo Barros lembra que na caserna a liderança “se constrói em associação com a hierarquia, as decisões subsistem na solidão do comando e a comunicação é sempre oficial”. O problema é que o comandante e seus subordinados não estão mais isolados atrás dos muros dos quartéis.
O telefone celular, o computador e outros aparelhos levam as redes sociais para dentro das unidades. E nelas estão manifestações que o Exército não estava acostumado a testemunhar. Basta abrir qualquer post na conta do Twitter da Força Terrestre. Diante da enxurrada de críticas, o comando fechou sua conta @exercitooficial para comentários em 2 de fevereiro.
Na semana passada, o general Alcides Valeriano de Faria Junior decidiu reabri-la ao publicar uma entrevista com a major Gabriela Rocha Bernardes, que está na força de paz das Nações Unidas, no Sudão.
REAÇÃO VIOLENTA – A reação do bolsonarismo radical foi violenta. Entre os primeiros 215 comentários no post, 188 eram ofensivos ao Exército e aos seus comandantes. O xingamento mais repetido foi “melancia” (40 menções), epíteto com o qual se busca dizer que os militares são “vermelhos” por dentro.
Logo atrás estava a acusação de “trairas” ou de “traição”, repetida 35 vezes. Uma dúzia de vezes os comentadores mandaram os militares “pintar sarjeta” ou “capinar”. Também mandavam a Força “fazer o L” e os acusavam de prender crianças e idosos e abandonar os “patriotas”.
Ou seja, a extrema direita continua a sonhar com um golpe de Estado e chama de “traição” o cumprimento da Constituição e a manutenção do Estado Democrático de Direito.
TUDO AO CONTRÁRIO – A extrema-direita ainda acredita que o Brasil está em vias de se transformar em um a ditadura porque os chefes militares prestam continência ao atual presidente: Lula. Até mesmo a decisão de retirar a política partidária de dentro dos quartéis após a contaminação ideológica registrada no governo Bolsonaro se transformou em razão para acusar o general Tomás de ser um instrumento do Foro de São Paulo.
De fato, o Exército não estava acostumado com isso. As publicações oficiais eram sempre elogiadas nas redes sociais por seu público, a maioria formada por conservadores e por eleitores de Jair Bolsonaro.
Os raros comentários críticos vinham de usuários identificados com a oposição ao governo do capitão. Agora, as principais bolhas da internet – a da esquerda e a da direita – se uniram para criticar a Força.
ACUSAÇÕES DESCABIDAS – Uns apontam para a conivência de generais com o governo anterior, com as ameaças à democracia e os acampamentos em frente aos quartéis, cuja escalada terminou no ataque à sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro.
Como não se viu no País pronunciamento de generais fechando Congresso e Supremo, os outros acusam os comandantes de traição.
O general Tomás terá de conviver com esse ambiente enquanto procura fazer do Exército uma força apolítica, apartidária, imparcial e coesa. Ao reabrir suas redes, a Força Terrestre mostra ter aprendido uma lição: esse terreno dominado pelo imediatismo foi minado pelos radicais.