A sessão ia apenas discutir liminares e não o mérito da questão
Jorge Béja
“Jura Novit Curia” (O juiz conhece o Direito) e “Narrat Mihi Facto
Dabo Tibi Ius” (Basta me narrar o fato que dou o Direito) não são
princípios absolutos. Se num processo judicial a parte debate
sobre direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário,
precisa fazer prova do seu teor ou vigência, conforme determina o artigo
337 do Código de Processo Civil, então, o que dizer quando está em
causa mero Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que é só do
conhecimento dos deputados e olhe lá! Como muito mais razão o Regimento
inteiro precisa ser exposto e comprovado. Daí porque não se chega ao
ponto de exigir que os ministros do Supremo o conhecessem, para que
fosse dispensada a prova do seu teor e vigência. Mormente num processo
que começou e acabou em 6 ou 7 dias.
Na quinta-feira, 10 de dezembro, 2015, por votação secreta, a chapa 2
para formar a Comissão Especial do Impeachment foi eleita pelo plenário
da Câmara dos Deputados. No mesmo dia, à noite, o ministro Fachin
ordenou a suspensão do resultado da votação e marcou sessão do pleno do
STF para que todos os ministros conhecessem e decidissem, no dia 16
seguinte, sobre os pedidos de liminares que o PCdoB formalizou na Medida
Cautelar embutida na ação de Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF), que o partido deu entrada no STF naquela mesma
tarde.Tudo muito rápido, portanto.
APRECIAR AS LIMINARES…
A finalidade da sessão do dia 16 era, exclusivamente, apreciar as
liminares em Medida Cautelar. Ora, ora, não se podia esperar que os 10
outros ministros (à exceção do esforço hercúleo e dedicação integral
do relator Fachin), em 5 dias (incluindo sábado,12 e domingo, 13) fossem
estudar o Regimento Interno da Câmara, que contém muitos artigos e é
enorme. Aliás, os 10 outros ministros nem conheciam a petição inicial da
ação do PCdoB. Apenas o relator Fachin conhecia, pois a peça estava em
seu poder e de mais ninguém. Nenhum outro ministro conhecia o conteúdo
das 74 páginas que compunham a petição da ação do PCdoB. Como, então,
exigir que no dia 16 (dia da sessão de julgamento) e no dia seguinte
(17) quando a sessão terminou, os 10 outros ministros estivessem
inteirados do conteúdo e das questões relevantes abordadas na petição da
ação do PCdoB?
É uma exigência impossível de ser atendida, levando em conta o
acúmulo de processos outros que cada ministro tem sob sua
responsabilidade e relatoria. Ainda que não tivessem tantos processos a
despachar e julgar, mesmo assim, convenhamos, seis dias para estudos,
complexos e de alta indagação, é tempo exíguo demais.
SÓ QUATRO PONTOS
Todos os ministros foram para a sessão confiando no relator — que não
decepcionou nem fez feio — e também confiando no ministro que votou
depois, no dia seguinte, o ministro Barroso. Quando começou a votar,
Barroso fez questão de dizer que divergia do relator em apenas quatro
pontos e que seu voto seria rápido e objetivo. E, mostrou os quatro
dedos da mão direita para indicar, sem margem de erro, que eram mesmo
quatro as divergências. Dotado do dom da oratória, com gestual próprio e
de bom gosto, olhar penetrante, de porte esbelto e voz tonitruante de
um metálico em si bemol, e expondo um raciocínio de sonora convicção, o
voto de Barroso foi o vencedor. Mesmo que Barroso não tendo lido, por
inteiro, o artigo do Regimento Interno da Câmara que previa votação
secreta também para “as demais eleições”, que foi o que ficou faltando
da leitura que Barroso fez do RI da Câmara, ao retomar o aparte que
havia concedido ao ministro Zavascki, mesmo assim o voto de Barroso
prevaleceu. E os demais ministros acreditaram na performance retórica de
Barroso e a maioria com ele votou.
O ADVOGADO AVISOU…
O comentarista Moacir Pimentel mandou à Tribuna da Internet o seguinte texto, que esclarece ainda mais a questão:
Notem que em meio ao absurdo voto do Barroso, o advogado da
Câmara se aproximou da Tribuna. Barroso, sabendo o que aconteceria em
seguida, o saudou dizendo:
– Se for uma questão de fato…
Lewandowski apressou-se a amaciar a toga justa para o colega. Disse ele, dirigindo-se ao advogado da Casa do Povo:
– Exatamente. Se V. Exa tiver uma questão de fato, exclusivamente de
fato, ou uma questão de ordem, está com a palavra . Nós não admitimos
contestações a votos de relatores ou de qualquer ministro vogal.
O advogado se defendeu:
– Sr. Presidente, não é nossa intenção polemizar com esta Corte…
– Nem poderia evidentemente, interrompeu-o Lewandowski
Balbuciou então, o advogado
– É só para colocar que o artigo 188 do Regimento Interno da Câmara , no
seu inciso III , menciona E NAS DEMAIS ELEIÇÕES. Apenas esse
esclarecimento.
E saiu desconsolado.
É só abrir o link da TV Justiça – sem cortes nas suas 4 horas de duração- para conferir o diálogo, aos 37 minutos e 50 segundos.
https://www.youtube.com/watch?v=U4p_n0J8r6g
FALTOU O GRITO DO ADVOGADO
O que ficou faltando foi o advogado da Câmara, com licença ou sem
licença do presidente da sessão, ir à tribuna e dizer, em alto e bom
som: “E nas demais eleições também, ministro”. Mas dizer isso em voz
alta, com ênfase, repetidamente, para que todos ouvissem. Enfim, um
protesto, veemente. Protesto saudável, bem-vindo e bendito, que até
Deus gostaria de ter ouvido e aprovaria, não é mesmo, saudoso doutor
Sobral Pinto? Um protesto mesmo da cadeira na plateia, sem precisar ir à
tribuna ou depois de tê-la deixado. Falar, falar e falar. O que
aconteceria ao advogado? Uma advertência? Uma reprimenda? A exclusão do
recinto? Que fosse, uma ou todas essas decisões do presidente
Lewandowski. O essencial já estaria dito. Dito e registrado em vídeo e
áudio e entrado para a história.
Não se está aqui lamentando não ter ocorrido um quiproquó, ou um
bafafá, ou um forrobodó entre o advogado, Barroso e Lewandovski. Mas se
tivesse ocorrido, que mal faria? Das muitas prerrogativas de um advogado
não é “reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo,
tribunal ou autoridade, contra inobservância de preceito de lei,
regulamento ou regimento”? (Estatuto da Advocacia Lei nº 8906, de
4.7.94, artigo 7º, nº XI).
Observe-se que para fazer reclamação, justa reclamação, a lei não
impõe qualquer condicionante ou obstáculo. O protesto é livre. Livre,
democrático, republicano, e os juízes precisam ouvir, antes de decidir.
Até mesmo depois, porque nada é imutável e eterno. A começar pela vida
corpórea de cada um de nós.
UM MORTO-VIVO
Muitos anos atrás defendi uma vítima que teve o tampo da cabeça
arrancado por um ônibus que invadiu a passarela de pedestre do Viaduto
de Benfica, no Rio. Ele sofreu também afundamento do crânio. E
sobreviveu, com graves sequelas. O rapaz venceu a ação na primeira
instância contra a empresa de ônibus que recorreu para o TJ do Rio para
pagar menos ou nada pagar. É sempre assim. Empresa de ônibus, quando diz
que está dando assistência às vítimas de acidentes, é mentira. No dia
da sessão de julgamento, comprei um paletó para meu cliente e o levei
comigo para assistir à sessão que iria julgar o recurso da empresa de
ônibus. Em certo momento, o desembargador-relator disse no seu voto que
negava a pensão mensal de um salário mínimo “porque a vítima tinha
morrido e não se pode pagar pensão a um morto”.
Foi quando, imediatamente, dei um pulo da cadeira da platéia e falei
bem alto. Gritei mesmo: “Não morreu não, doutor relator. Ele está vivo. E
está aqui comigo (e apontei para meu cliente)”. Pronto, foi o
suficiente para que o Tribunal desse a ele, além da verba por dano
moral, a pensão vitalícia, que recebe até hoje, 20 anos depois. Foi
aquele grito que dei — mesmo me sujeitando à uma tremenda reprimenda ou
expulsão do recinto — que fez com que a Justiça fosse concretizada na
sua plenitude, se é que dinheiro paga danos dessa ordem. Terminada a
sessão, o tal desembargador me encontrou no corredor, pediu desculpas e
disse:
“Dr. Béja, quase matei seu cliente. Ainda bem que o senhor estava
atento, presente e com sua intervenção consertei meu voto e meus colegas
desembargadores também”.
Parece que foi isso que faltou fazer naquela sessão do STF. Mesmo que custasse a expulsão do advogado do recinto.