No dia 16 de fevereiro passado o STF concluiu o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs 29 e 30) e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4578) que tratavam da Lei Complementar 135/2010, a “Lei da Ficha Limpa”, e por maioria de votos prevaleceu o entendimento em favor da constitucionalidade da lei que poderá ser aplicada nas eleições agora 2012, alcançando atos e fatos ocorridos antes de sua vigência.
O mais grave e altamente preocupante para a sociedade (desenganada e enganada) na decisão plenária do STF, ocorreu ao se fazer tábua rasa dos arts. 15, III, c.c. o art. 5º. , LVII, da Constituição Federal, que exigem que a validade e eficácia das decisões dependam do seu trânsito em julgado e quando exauridos os recursos perante as Cortes Superiores. Em matéria eleitoral de inelegibilidade, o até então preponderando princípio da presunção da inocência passa a não ter expressão e os recursos da competência das Cortes Superiores em matéria eleitoral passam a ter efeito meramente rescisório.
Vamos refrescar a memória.
Diuturnamente a imprensa nacional vem informando com manifesto maniqueísmo condutas de homens públicos brasileiros que são incompatíveis com a boa conduta administrativa e com a ética, criando um caldo de cultura de revanchismo, traduzindo para a opinião pública de que tudo o que for feito em sentido contrário é justificável, na velha máxima que os meios justificam os fins.
O ato de corrupção nas sociedades de qualquer continente se apresenta em sua forma mais odienta quando ocorre à paga e tráfico de influência, além de outras práticas menores, não se constituindo a corrupção coisa específicas da sociedade brasileira, já que na história da humanidade tais fatos são repetidos. Embora um fato comum a toda sociedade, não deve a corrupção deixar de ser combatida, reduzindo-a a níveis compatíveis, numa forma constante e interminável, sem o modismo, como bem assinalou a Presidente Dilma Rousseff.
A liberdade de imprensa nos pós 1988, quando a CF vedou a censura, tem relevância para a sociedade, salvo quando se age por interesses contrariados, pois, antes, tais atos eram encobertos pela força, como na ditadura militar, ou pela conveniência, nas gestões do PSDB, proporciona o conhecimento por parte da sociedade brasileira do que se passa com os negócios da Nação, criando condições para uma boa visão crítica e para que cada um exerça o seu direito de cidadania, especialmente na escolha de seus governantes.
O combate à corrupção não deve agasalhar o irracionalismo (os meios justificam os fins) e tal combate não terá consequência positiva se também o cidadão no seu dia a dia não compatibilizar a sua conduta com a ética. Nenhuma lei ou Tribunal resolverá o problema da corrupção no Brasil se essa pretendida revolução não ocorrer de baixo para cima. Enquanto qualquer pessoa, física ou jurídica, entender que deve se aproveitar dos favores e das facilidades abertos no trato com a coisa pública, sequer haverá redução do cranco que dilacera e corrói a nossa sociedade.
Não é suprimindo garantias constitucionais do cidadão que foram alcançadas depois de um lento e processo histórico que se extirpará o mal da corrupção. Qualquer conduta ilícita de natureza penal ou cível, somente será refreada quando houver certeza da punição, observado os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e dos recursos a ela inerentes e da presunção da inocência, arts. 5º, LIV, LV e LVII, da Norma Fundamental brasileira, afastando como prática o atavismo jurídico.
Se olhos da imprensa somente eram voltados para as condutas incompatíveis perpetradas no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, agora, felizmente, se voltaram também para o Poder Judiciário que teve suas vísceras abertas com a atuação do CNJ. Alcançados todos os Poderes, a corrupção deve ser combatida de forma racional, respeitadas as garantias individuais do cidadão, sem atavismo e sem o sensacionalismo modista.
No caso específico da Lei da Ficha, ela nasceu da iniciativa popular capitaneada pela CNBB que recolheu mais de 1.300 (um milhão e trezentas) mil assinaturas de eleitores, resultando pela sua natureza revanchista e populista, como resposta aos desvios de conduta dos homens públicos de forma, irracional. A iniciativa tomou forma de anteprojeto e apresentada no Congresso Nacional, depois de aprovado e sancionado pelo Presidente da República, converteu-se na LC 135/2010, que alterou de sobremaneira a LC 64/90, que trata das Inelegibilidades Eleitorais.
Na LC 135/2010, infelizmente, o que mais me preocupa e que deveria preocupar a todos operadores do direito, acolhida pelo STF, são os seus males e repercussão futura que poderá vir a alcançar o direito do cidadão, pois, de forma acintosa, os princípios da anterioridade da lei e da presunção da inocência, conquistas da humanidade, foram esquecidos pelo STF, órgão julgador e interpretador da Constituição Federal, com votos divergentes dos eminentes ministros Celso de Mello, o decano e mais lúcido entre todos, Gilmar Mendes, Dias Toffoli,
Tramita no Congresso Nacional uma PEC de iniciativa do Presidente do STF alterando a tramitação das demandas judiciais, ao introduzir o cumprimento antecipado da pena, por exemplo, de forma definitiva, apenas depois do julgamento de uma Corte Ordinária (Tribunais de Justiça, TRFs ou TREs). Traduzindo em miúdos. Duas partes litigam sobre um mesmo patrimônio e o juiz decide o processo. Inconformada, uma das partes recorre ao TJBA. Se mantida a decisão do juiz pelo TJ, o que foi decidido é logo executado, independentemente da existência do Recurso Extraordinário e do Especial.
Não haveria necessidade de qualquer lei nova no combate a corrupção se o Estado Jurisdicional Brasileiro fosse ágil e eficiente. De que adianta uma lei se na Comarca em que ela deverá ser aplicada o cargo de juiz está vago até por décadas. A Lei da Ficha Limpa apenas procura maquiar o Estado ineficaz.
Depois de decidida a matéria pelo STF, em se tratando de inelegibilidade, os princípios da presunção da inocência e da irretroatividade das leis foram feridos mortalmente.
O princípio da irretroatividade da norma reside no art. 5º, XXXVI e XL. Promulgada uma nova lei, ela não poderá alcançar os fatos anteriores. Se a norma for de direito processual, ela será aplicada aos processos pendentes, daqui para frente.
Originariamente, na redação da Lei Complementar 64/90, Lei das Inelegibilidades, o prazo de cominação de inelegibilidade para as situações ali definidas era de 03 anos. Com a Lei da Ficha Limpa, LC 135/2010, o prazo foi estendido para 08 anos.
Como o STF entendeu que a LC 135/2010 alcança a fatos anteriormente acontecidos, quem estava alcançado pela inelegibilidade por 03 anos, passou a ficar por 08. Quem teve contas rejeitadas anteriormente a 2010, passou a ficar inelegível por 08 anos, contados da decisão desaprovadora.
O julgamento da lei da Ficha pelo STF não definiu todas as situações e nos juízos e tribunais serão processadas inúmeras demandas questionadoras do alcance dela. Quem aparentemente estará alcançado por ela, poderá vir a não estar.
De qualquer maneira, como previsto no art. 1º, letra “g”, da LC 64 emendada pela LC 135/2010, quem teve contas rejeitadas por Cortes de Contas, pelo Congresso Nacional, Assembleias Legislativas ou Câmaras Municipais, mediante provimento judicial, poderá vir a concorrer a pleito eletivo. Se um Prefeito recebeu do tribunal de Contas Parecer Prévio opinativo de rejeição, ele somente ficará inelegível se o Parecer houver sido apreciado e mantido pela Câmara Municipal. Nem toda condenação por improbidade administrativa poderá levar a inelegibilidade do improbo, já que a Lei Complementar somente prevê a inelegibilidade por improbidade dolosa.
Nas alíneas “g” do art. 1º da LC 64/90 encontramos:
“g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição; Redação da L C Nº 135/04.06.2010.
l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena; Redação da L C Nº 135/04.06.2010.”
Se uma Corte Ordinária mantiver a decisão do juiz de 1º Grau, causando inelegibilidade de alguém, o prejudicado, mediante provimento cautelar incidental a recurso Extraordinário ou Especial poderá obter efeito suspensivo da decisão colegiada, mantendo sua condição de postulante a cargo eletivo.
Para mim, a Lei da Ficha Limpa, de péssima redação, nada mais é do que mais uma agressão ao Estado de Direito, mais um “samba do crioulo doido”, e representa o pensamento mais conservador da CNBB e da OAB, esta, por sua atual direção federal.
Em se tratando de matéria eleitoral, -inelegibilidade -, nas Cortes Eleitorais acontece de tudo. Nas eleições municipais passadas subscrevi petição impugnatória de pedido de registro de candidato a Prefeito. O processo chegou até o TSE, relator o Min. Eros Grau. Levantei as decisões já proferidas pelo ex-ministro Grau para idêntica situação e localizei decisões conflitantes entre si do mesmo Ministro. Na hipótese mencionada, Graus resolveu graduar a corrupção e o improbo concorreu ao pleito.
Haverá uma longa caminhada para se entender o real alcance da lei da Ficha Limpa.
Paulo Afonso, 04 de março de 2012.
Fernando Montalvão.
Titular do Escrit. Montalvão Advogados Associados.
Exmo. Sr. Des. Fed. RALDÊNIO BONIFÁCIO COSTA
DD. Vice-Presidente do Egrégio TRF 2ª. Região