Por Carlos Lungarzo 08/01/2011 às 13:27
Caso Battisti:
O Tribunal da Haia
Carlos A. Lungarzo
Anistia Internacional
Desde o anúncio brasileiro de 31 de dezembro de que Cesare Battisti não seria extraditado, a Itália lançou na mídia grande número de bravatas, que encontraram repercussão no Brasil apenas na classe alta europeizada e na classe média revanchista. Entretanto, enquanto esses brados estimularam os profetas do terror nestas terras ex(?)-coloniais, foram diminuindo em intensidade nos meios políticos da metrópole. Um dos ?porta-brados?, o chanceler, mudou bastante sua maneira de agir.
O ministro de relações exteriores, Franco Frattini, é famoso por duas coisas: (1) por ser um dois poucos entre os altos dignitários italianos que nunca passou por um partido neofascista, e (2) por seu incansável combate à difusão dos videogames. Parece que as cenas de sexo (às vezes há algumas figurinhas ?brincando? na tela) pervertem a pureza da alma infantil. No começo, Frattini acompanhou o embalo de seus colegas, mas, quando viu que o antigo líder fascista juvenil de Milão de 1973, Ignazio La Russa, ameaçava o Brasil com coisas truculentas, decidiu descer do cavalo, e nos últimos três dias optou por dizer que ninguém ganha nada com retaliações e bloqueios. Não sabemos, mas talvez pensou na FIAT que tem sua maior fonte de ingressos nos consumidores brasileiros.
Muito mais racional que os outros, o chanceler cada vez usa ameaças mais suaves e discretas, e já no 06/01 fez apenas uma discreta menção ao que fora, até o dia anterior, seu carro chefe: o Tribunal de Justiça da Haia. Talvez pela necessidade de testar os jogos eletrônicos para poder fundamentar sua censura, o ministro parece possuir uma grande habilidade táctica e sabe mudar a posição do joystick em décima de segundo.
Como sempre, a ?torcida? do mundo periférico corre atrás, e tanto pelos jornais como pela TV a cabo, alguns especialistas brasileiros em generalidades internacionais continuam ameaçando com o fantasma daquele tribunal. Vale a pena ver rapidamente esse assunto da ICJ (Tribunal Internacional de Justiça) da Haia, que tanto reboliço está causando.
Só para acalmar o público humanitário (que os ideólogos das elites tentam manter perturbado com informações alarmistas, cuja falsidade nem todos podem aferir), lembremos que a burocracia internacional, por pomposos que sejam seus cargos, está interessada em relações de interesses e vantagens e, salvo alguma exceção, não se importa por justiça nem por direitos humanos. (Uma exceção à que desejo fazer justiça é o francês Guy Primm, com quem estive vinculado no ACNUR.) Quanto à eterna chantagem, que se funda sempre na tendência de elite brasileira à submissão, deve pensar-se que não é inevitável que uma atitude independente afaste o Brasil do Primeiro Mundo. Por um lado, se a Itália fosse poderosa para barrar a entrada do Brasil no CS da ONU, usaria esse poder para obter uma cadeira para ela própria. Por outro lado, o governo brasileiro tem mostrado no último ano menos fascínio por aquela difícil quanto inútil conquista: entre a subserviência da época Collor-FHC e as pretensões de voltar ao império, deve existir um ponto intermédio mais sensato.
Aliás, se a imagem internacional depende da seriedade do país, deveríamos refletir até que ponto seria considerado sério um estado cujo governo se ajoelhasse perante um governo integrado pela máfia, o Vaticano, o neofascismo e a embaixada americana.
Os colegas dos movimentos humanitários que se sentem alarmados pelas profecias antiasilo difundida por charlatões qualificados, podem acalmar-se pensando que o maior volume de nossas ?desinformações? atuais está constituído por guerra de boatos. Não deve esquecer-se que a muitos consultores privados em assuntos internacionais possui grandes conexões com a altíssima elite mundial, e seus palpites são bem recompensados por grandes empresas exportadoras, fabricantes de armas, exércitos e governos, quando não... Salvo as poucas exceções que confirmam a regra, sua tarefa é tornar submissa a opinião pública de seus países para aceitar as condições dos grandes patrões, sejam subsídios agrícolas, planos militares, pactos antiterroristas ou outras camisas de força. Os menos bem sucedidos, se conformam com colher algumas migalhas que recebem por serviços de desinformação, como aconteceu permanentemente com o caso Battisti.
Além disso, pensem que desde que se inventou a ciência no século 16º (aliás, justamente por um italiano, Galileu), o conhecimento verdadeiro está ao alcance de todos, e acreditar na falação de ?mestres?, ?ungidos? ou ?iluminados? é pura ingenuidade. Que eles possam vencer é verdade, pois têm o dinheiro e a força bruta, mas suas vigarices não convencem.
Tribunal Internacional de Justiça
A International Court of Justice (ICJ, conhecida em português como Tribunal Internacional de Justiça) foi criada em 1945, como o organismo judicial da ONU, e não deve ser confundida com o Tribunal Penal Internacional. A ICJ tem duas missões juridicamente diferentes: (1) a de dirimir conflitos entre os estados membros, e (2) fornecer consultoria legal solicitada por governos e agências, ou pela Assembléia Geral da ONU. Seu funcionamento, porém, começou em 1946. Sua primeira tarefa foi arbitrar num conflito entre o Reino Unido e a Albânia, por causa das minas colocadas por esta república no canal de Corfu.
A Corte depende da ONU, cuja carta estabelece no artigo 15º que o tribunal está obrigado a aceitar as decisões do Conselho de Segurança. Teoricamente a ICJ tem jurisdição compulsória sobre todos os países membros, mas na prática, os Estados Unidos tem-se colocado fora dessa jurisdição em 1986, depois que o órgão condenasse este país por sua guerra não declarada contra Nicarágua, considerada ilegal. Este exemplo mostra que, estando integrado por países dos mais diversos estilos e localizações, o Tribunal não atua como servidor das grandes potências, como algumas pessoas acreditam. Com efeito, os linchadores de Battisti entendem que a ICJ seria tão servil com os perseguidores de Cesare, como o foi a Corte Européia de Direitos Humanos, quando ele reclamou por ter tido seu refúgio revogado pela França. Esta opinião parte de um equívoco, embora qualquer corpo judicial oficial possa ser, obviamente, alvo de conflitos de interesses. Mas a CIJ não está orientada a defender o colonialismo e o imperialismo.
O tribunal tem 15 juízes, eleitos pela Assembléia Geral da ONU e pelo Conselho de Segurança, escolhidos entre os candidatos apresentados pela Corte Permanente de Arbitragem. O estatuto impede que haja mais de um membro de um mesmo país. Além disso, segundo as declarações de princípios da organização, os candidatos são escolhidos nos diversos lugares do planeta, para representar da melhor maneira possível a pluralidade de idéias e culturas. Pelo menos em teoria, o intuito da Corte é ministrar uma verdadeira justiça, o que quiçá explique a reticência dos estados para submeter casos para julgamento. Um aspecto importante é o caráter não vitalício dos juízes, o que diferencia o tribunal das cortes da maioria dos países, embora o prazo de 9 anos, renováveis, seja excessivo.
Neste momento, e até 2018, Brasil está representado por Antonio Augusto Cançado Trindade, professor da Universidade de Brasília, e um dos mais importantes sistematizadores e pesquisadores da teoria do Direito Humanitário, inclusive internacional. Seu trabalho é notável e muito apreciado no exterior, onde é considerado o mais prestigioso juiz da ICJ. Lamentavelmente, Trindade não é muito conhecido fora do meio dos ativistas de direitos humanos brasileiros por seu estilo discreto e nada performático.
Dos países europeus, estão atualmente representados o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Rússia e a Eslováquia. Os restantes representam as diversas regiões do Planeta.
Casos e Precedentes
Desde 1947, quando a Corte começou a funcionar de maneira contínua, o número de casos tratados por ela é pequeno, tendo em conta que sua jurisdição abrange todos os países da ONU. Até 2010, a Corte tinha tratado 132 casos contenciosos (casos de litígios entre estados) e se tinha manifestado em 27 procedimentos consultivos.
Os casos litigiosos tratados pela Corte envolvem, em sua enorme maioria, grandes problemas dos países litigantes, como a segurança regional ou nacional, as divergências no uso de fontes naturais, delimitações de fronteiras, cuidado da fauna e da flora, contaminação, produção e extração de produtos nocivos. Dois assuntos que têm ocupado quase um 10% das pautas são os acidentes aéreos. Seguem os relativos a fronteiras, caça e pesca, e interpretações genéricas sobre tópicos de direito internacional.
É menor o número de casos que se referem a violações massivas aos direitos humanos, manutenção de tropas de ocupação, genocídios, racismo e discriminação. Mas estes também são casos coletivos, onde dois estados litigam por causa das decisões que devem ser tomadas sobre milhares de pessoas. Eventualmente, alguns conflitos envolvem um número menor de cidadãos, como o caso de Avena e outros 53 mexicanos, arrestados, julgados e condenados a morte pelos EEUU (janeiro de 2009), no qual a Corte condenou a este país.
Aliás, mesmo nestes casos, quando se tratam problemas de direitos humanos, as sanções da Corte têm caído sobre os estados que aplicam punições e não sobre os que ofereceram proteção. Além disso, mesmo os casos contenciosos e não consultivos incluem com freqüência amplas questões de princípio, como a legitimidade do uso da violência, a duração do mandato de uma força de paz, e assim em diante.
Casos de Asilo e Extradição
Em seus 64 anos de história, a ICJ tratou de apenas dois casos de asilo e/ou extradição, enquanto no mesmo período milhares de extradições foram negadas e milhares de asilos e refúgios foram concedidos no subcontinente latino-americano, onde requerentes ou suplicantes eram de diversos lugares do mundo.
O primeiro caso originou-se no asilo diplomático concedido pelo embaixador da Colômbia em Lima, no dia 3 de janeiro de 1949, na sede de sua legação, a Victor Raúl Haya de La Torre (1895-1979), líder populista, fundador e líder da Aliança Popular Revolucionária do Peru. Haya era tão conhecido como hoje é Hugo Chaves ou o ex-presidente Lula. Em 3 de outubro de 1948, ele tinha tentado uma revolta contra o governo peruano, e este o acusava, como sempre, de crimes comuns. Aliás, ninguém que pretende a devolução de um refugiado reconhece que seus delitos são políticos ou ideológicos. Colômbia reclamou de Peru um salvo-conduto para que Haya pudesse deixar a embaixada rumo a Bogotá, mas Peru recusou e ambos os países trocaram ofensas (nada aproximado, porém, às da Itália contra o Brasil), até que Colômbia apresentou seu pedido junto à ICJ, enquanto Peru apresentava uma réplica.
No julgamento de novembro de 1950, por 15 votos a 1, a Corte determinou que rebelião não é crime comum, mas político. Apesar disso, negou que o Peru fosse obrigado a entregar um salvo-conduto, pois este documento é requerido só quando o país suplicante exige que o asilado abandone a embaixada, e deva passar pelo território do qual está fugindo para dirigir-se ao país da embaixada asilante, sofrendo risco de captura.
Não se precisa curso de diplomacia ou de RI para perceber que o caso não tem nada em comum com o de Battisti. Mas, por via das dúvidas, observemos. Haya foi acusado, com ou sem motivo, de colocar em risco o sistema político do Peru naquele momento. Sua ação, portanto, modificaria a vida de milhões de pessoas, seja para bem ou para mal. Ainda, Colômbia não se limitou a asilar o perseguido, mas exigiu um documento que o Peru tinha o direito de negar, pois não havia nenhum fator (saúde, etc.) que exigissem de Haya sair da embaixada, um palácio confortável. Finalmente, a pesar do caráter extraterritorial das embaixadas, o Peru poderia ter argumentado (o que, com bom critério, não fez) que a soberania da Colômbia sobre o território da embaixada era condicionada, pois dependia de uma concessão do Peru.
Numa questão adicional colocada pelo Peru, a Corte retomou o assunto em 13 de junho de 1951, e deliberou, por 13 votos a 1, que Colômbia não tinha nenhuma obrigação de entregar Haya de La Torre às autoridades peruanas. (Veja o documento original, aqui). Portanto, protegeu o requerido, apesar da pressão internacional de Peru contra a Corte.
De fato, este é um caso de asilo, mas não é bem um caso de extradição. Aliás, o único contencioso de extradição tratado pela ICJ foi o conflito Bélgica contra Senegal, cujos detalhes podem ser vistos aqui. Em 19 de fevereiro de 2009, a Bélgica entrou na ICJ com uma ação contra Senegal para a perseguição de Hissène Habré, ex-presidente do Tchad (morando oficialmente nesse país africano desde 1990). A Bélgica exigia o bem que fosse julgado em Dakkar, ou bem que fosse extraditado à Bélgica por violação à Convenção Internacional contra a Tortura (1984). O caso do ditador Habré é uma situação típica de crime contra a humanidade, um estilo de crime que certamente não é político, e tampouco é comum, como é tratado pela rotina jurídica que ainda não tomou conhecimento dos eventos de Nuremberg nos anos 40. Um crime contra a humanidade é uma atrocidade executada por quem possui o poder, com o objetivo de atingir membros de grupos designados, como raças, nacionalidades, religiões ou, simplesmente, grupos de pessoas definidas como ?inimigos?. Os crimes atribuídos a Habré foram cometidos entre 1982 e 1990, ou seja que a reclamação da Bélgica foi formulada com bastante atraso.
Crimes contra a Humanidade possuem, essencialmente, uma jurisdição planetária, embora esta verdade ?natural? seja contestada por alguns estados (como os EEUU e Israel, por exemplo) que não gostariam de ver seus nacionais sendo condenados por crimes de guerra. Trata-se de um caso onde o perigo que representa a pessoa procurada (pela atrocidade, intensidade e extensão de seus crimes) justifica uma ação compulsória para obrigar à extradição. Apesar disso, a Corte não aceitou a reclamação da Bélgica de tomar medidas provisionais contra Senegal, argumentando que o criminoso estava suficientemente vigiado em Senegal, e seria julgado nesse país, segundo prometeu o governo.
E aqui temos uma má notícia para os linchadores de Battisti: o único voto contra este parecer foi o do representante Brasileiro, Antonio Augusto Cançado Trindade. O pior não é que seu mandato expire só em 2018, mas que ele é especialista em Direitos Humanos, e que sua eleição para a CIJ teve no Conselho de Segurança da ONU teve 14 votos a favor e apenas uma abstenção: o dos Estados Unidos. Trindade já foi presidente de Corte Interamericana de Direitos Humanos (não confundir com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, CIDH), na qual destacou-se como um militante devotado e corajoso. Aliás, ele foi um crítico da própria CIDH, pela lentidão com que esta tratou os crimes e atrocidades que se praticam na FEBEM do Brasil. O fato de que o voto do professor Trindade tinha sido vencido na ICJ no caso de Habré não significa necessariamente que, num imaginário caso em que o julgado fosse Battisti, também seria vencido.
O que acontece é que o Tribunal Internacional de Justiça, talvez por razões complexas que dependam de seu histórico e de sua miscigenação cultura, destaca-se por sua tendência garantista, quando os veredictos afetam pessoas específicas. O fato de que seu garantismo proteja crimes contra os Direitos Humanos não é certamente elogiável, mas, é melhor isso que a cumplicidade com perseguidores e linchadores.
E Então...?
Os assessores de linchamento (uma nova profissão sobre a qual as elites do Brasil e da Itália poderiam produzir uma bem sucedida joint venture) se excederam em sua picaretagem em várias declarações.
Uma delas é a que, apesar de que as sentenças da CIJ não são de cumprimento obrigatório (o que é verdade, talvez a única de todas as opiniões que vomitaram na mídia) é absurdo pensar que possam ser desobedecidas. Não desejo entediar ao leitor, mas há muitos contenciosos onde as sentenças da Corte foram não apenas desobedecidas, mas totalmente ignoradas. (É só conferir no site que mencionei acima.)
Outra é a que o Brasil seria condenado, se a Itália apresentasse queixa. Acho uma crença muito negativa a de pensar que neste complicado mundo toda instituição é subornável, e nada se salva. Temos exemplos no Brasil, onde os juízes defenderam sua independência, do qual serve de exemplo o próprio caso Battisti. A ilegal revogação da condição de refugiado foi ganha por um voto (apenas 11% do total) e o direito do chefe do estado a decidir foi perdida também por um voto.
Mas não há certeza de que a Itália apresente uma reclamação na ICJ. Este é um ponto intrigante, porque o atual estado italiano aproveitou todos os ensejos de fazer o ridículo, colocando em situação embaraçosa a um povo que deveria ser conhecido pelo Renascimento e o Iluminismo, e não por esta onda decadente, que esperemos seja transitória. Pessoalmente penso que não faria este, porque ridículo também tem hora.
Quanto a sugestão de um jurista que fez parte da sempre lembrada sociedade de gênios de Fernando Collor, de que Brasil deve recorrer à Corte Européia de Direitos Humanos, é tão descabida que nem vale a pena comentá-la. Por que não à Organização Mundial do Comércio, ou a OMS, ou ainda à UNICEF? Os nossos linchadores abusam de uma maneira impiedosa da falta de informação do público sobre assuntos jurídicos. Aliás, não é porque o público seja omisso: o caráter hermético do direito foi criado especialmente para que ninguém saiba o que é verdadeiro e o que é falso.
Finalmente, as predições sobre o STF, cujo plenário, segundo os linchadores, reprovará o decreto de Lula, não me parecem exatas. É verdade que vários de seus membros deram uma imagem triste da justiça brasileira ao revogar o ato de refúgio. Mas, não vejo motivo para alguns deles insistam nisso. Isso seria contraditório, de maneira totalmente ostensiva, sem necessidade de nenhuma reflexão, com o que a maioria aprovou na última oitiva do julgamento de Battisti. O presidente decidiu, sem a menor dúvida, em plena harmonia com o artigo 3º, inciso f do Tratado Brasil-Itália, e a fundamentação da AGU, embora poderia ter sido muito mais forte, é mesmo assim, mais do que suficiente.
Os que talvez votem contra a decisão de Lula, eu imagino, serão minoria, e são apenas os que têm uma vocação profunda de inquisidor. Ora, uma vocação tão forte Deus somente concede a alguns poucos escolhidos.
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Fonte: CMI Brasil