Governo Bolsonaro sufoca rede de assistência, enquanto dá recursos a manicômios, condenados pela OMS
Foi um avanço no tratamento das doenças mentais o movimento surgido no início dos anos 1970 com o apoio de recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em vez de submeter os pacientes às práticas desumanas que vigoravam nos tradicionais “manicômios”, uma lei de 2001 modernizou a psiquiatria brasileira ao estabelecer o tratamento preferencial fora desses hospitais psiquiátricos, como recomendava a OMS. Mais de duas décadas depois, mesmo que o modelo tenha se mostrado o mais indicado para os doentes mentais e viciados em drogas, o governo Jair Bolsonaro tem promovido ações que desafiam a própria lei.
A prova mais recente dessa perigosa mudança de política foi revelada pelo Jornal Hoje, da TV Globo. Trata-se de um edital da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, do Ministério da Cidadania, para distribuir R$ 5,7 milhões entre 19 hospitais psiquiátricos, enquanto a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), constituída pelos centros que fazem atendimento não hospitalar de doentes mentais e viciados, é deixada à míngua e enfrenta dificuldades pela falta de recursos. A discriminação financeira tem o objetivo claro de, por motivo ideológico, sufocar a estrutura de atendimento multidisciplinar e comunitário, em favorecimento dos hospitais psiquiátricos.
Entre os hospitais que deverão receber dinheiro do governo estão instituições sob investigação. É o caso do Sanatório Maringá, no Paraná, contra o qual há 12 ações instauradas pelo Ministério Público para investigar mortes e denúncias de que pacientes ficam em isolamento permanente. Isso não impediu que o secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, Quirino Cordeiro, certificasse em abril o Sanatório Maringá como estabelecimento de referência no tratamento de doenças mentais e dependentes químicos.
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) exige que o edital seja suspenso por ir contra a Política Nacional de Saúde Mental e por desrespeitar o sistema de atendimento em base comunitária e suas redes. Não poderia haver mesmo maior retrocesso do que levá-lo adiante.
Antes da reforma iniciada nos anos 1970, os pacientes eram alvos frequentes de maus-tratos e muitos ficavam internados pelo resto de sua vida. A cidade de Barbacena, Minas Gerais, foi apelidada “cidade dos loucos”, devido à abertura de diversos estabelecimentos para doentes mentais, em razão do clima ameno. No Hospital Colônia de Barbacena, entre as décadas de 1960 e 1980, estima-se que 60 mil pacientes tenham morrido de frio, fome e choques elétricos, terapia comum para doentes mentais. O episódio, lembrou ao Jornal Hoje o psiquiatra Dartiu Xavier, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ficou conhecido como “holocausto brasileiro”. É inaceitável uma política pública que aumente o risco de que tragédias assim se repitam.
O Globo