Há mais fragilidade fiscal do que a existência de um superávit fiscal minguado deixa entrever
O governo Bolsonaro deixará uma herança maldita nas contas públicas para seu sucessor - ou para si próprio, se reeleito. Há contas adicionais pendentes de até R$ 430 bilhões, ou 4,2% do PIB, que podem vencer no ano que vem, estimam os economistas Manoel Pires e Bráulio Borges no Boletim Macro, do FGV Ibre. O estudo não aponta a origem dos fatores que pioraram as contas públicas, mas eles podem ser atribuídos em sua quase totalidade aos gastos e/ou renúncia de receitas destinados a reeleger o presidente da República.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, assumiu o cargo em 2019 prometendo zerar o déficit público em um ano. Era bravata, e não foi a única contada por ele. Este ano o governo pode fechar as contas com um pequeno superávit primário. Mas, longe de se estar a caminho do equilíbrio, há um grande desequilíbrio potencial encoberto, provocado por uma política econômica voltada para fins eleitorais.
O governo vive de imediato um dilema fiscal provocado pela intemperança do presidente. Bolsonaro nunca pensou em criar programas sociais - ao contrário, ironizava os existentes. Chegou o período eleitoral e, querendo repetir a melhoria de seus péssimos índices de popularidade durante a pandemia com a adoção do auxílio emergencial a 68 milhões de brasileiros, resolveu recorrer ao Auxílio Brasil, um arremedo desvirtuado e turbinado do bem-sucedido Bolsa Família. A média de R$ 200 do programa anterior subiu para R$ 400 e depois, para R$ 600. O intuito eleitoral ficou evidente quando fixou a data para por fim ao valor extra: 31 de dezembro.
O presidente, porém, largou muito atrás na corrida eleitoral e continua distante do favorito, o ex-presidente Lula. Bolsonaro prometeu manter os R$ 600 se ganhar a eleição, assim como Lula. Com um detalhe: não há dinheiro para isso. No cargo, Bolsonaro terá de sancionar um orçamento para o próximo presidente, mas a conta, obedecendo o teto de gastos, é difícil de fechar.
Mesmo para criar o Auxílio Brasil e aumentá-lo, foi preciso destruir a prestações o teto de gastos. Para criar o auxílio com o valor de R$ 400, o governo conseguiu, com apoio do Centrão, parceiro na empreitada eleitoral, inscrever o calote dos precatórios na Constituição e liberar R$ 112 bilhões extra-teto, metade dos quais para o programa social. Para elevá-lo a R$ 600, foi decretado estado de emergência, com novo rombo no teto de R$ 42 bilhões. A conta do programa em 2023 é de cerca de R$ 150 bilhões. Os gastos com o Bolsa família giravam em torno de R$ 35 bilhões.
Quando o teto de gastos foi criado, havia a esperança de que ele obrigasse o Legislativo e Executivo a discutirem a fundo as prioridades das despesas públicas. Desejo vão. Com a amarra nas despesas, tratou-se de reduzir as receitas com benesses. No vale tudo eleitoral de agora, as duas coisas ocorreram: redução de receitas e aumento de gastos.
As agruras fiscais de 2023, pelos cálculos dos economistas do FGV Ibre, têm várias naturezas. Afetam diretamente o teto de gastos, em primeiro lugar, o aumento do Auxilio Brasil, seguido do reajuste do funcionalismo público quase inevitável. Ambos, segundo estimativas extra-oficiais do governo, comprimiriam as despesas de custeio do Estado para algo em torno de R$ 90 bilhões ou menos, o que colocaria o aparelho de Estado perto do shutdown. Para Pires e Borges, essa conta é de 1,2% do PIB, ou mais de R$ 120 bilhões.
A redução de receitas, que abala o resultado primário, mas não o teto, pode chegar a 0,8% do PIB, segundo os economistas. Na conta entra a redução dos impostos sobre combustíveis (R$ 62 bilhões) e, se levada adiante, a correção da tabela do IR de pessoas físicas, com mais R$ 25 bilhões.
A conta vai mais longe. Com a redução do ICMS dos combustíveis nos Estados, eles conseguiram no STF deixar de pagar dívidas, reduzindo receitas da União quando ela se vê diante de uma conta maior de juros, elevando o déficit nominal. Essa fatura, segundo Pires e Borges, é da ordem de R$ 77 bilhões, ou 0,7% do PIB. Mas há ainda outra, como a compensação da União aos Estados pelo corte de impostos, estimada em R$ 144 bilhões, ou 1,4% do PIB.
Todos esses impactos não se abaterão sobre as contas públicas ao mesmo tempo e alguns podem até não ocorrer em 2023. No entanto, são a demonstração concreta de que há mais fragilidade fiscal do que a existência de um superávit fiscal minguado, fruto de um aumento excepcional de arrecadação no ano corrente, deixa entrever.
Valor Econômico