Desde a promulgação da Constituição de 1988, nunca foram aprovadas tantas PECs quanto no atual governo
A Constituição brasileira já era considerada um monstrengo antes do governo Jair Bolsonaro. Seu texto, perto de 80 mil palavras na última versão, faz dela por algumas medidas a maior do mundo (ou a segunda maior, atrás apenas da indiana). Mas, mesmo para os padrões superlativos consagrados no Brasil, em tempos recentes tem sido incomparável, para empregar a feliz expressão de Roberto Campos, a “fúria legiferante” do Congresso para emendar a Carta.
A tentação de gravar tudo na Constituição ganhou impulso inédito no Legislativo sob a liderança do deputado Arthur Lira (PP-AL) e do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Das 125 emendas à Constituição aprovadas desde 1988, nada menos que 26 — ou mais de um quinto — foram promulgadas na atual legislatura (cuja duração corresponde a apenas um décimo da vigência do texto). Onze dessas emendas, ou 9%, foram aprovadas nos últimos seis meses.
Ainda há, de acordo com os respectivos sites, 968 Propostas de Emenda à Constituição (PECs) em tramitação na Câmara e 352 no Senado. Não é exagero afirmar que há PEC para tudo. Várias delas propõem mudanças necessárias, caso da reforma tributária ou da administrativa. Mas a vasta maioria não tem cabimento. Procura apenas introduzir no texto constitucional direitos que satisfazem a demandas específicas.
O motivo para a aberração é conhecido. Grupos de interesse se sentem mais protegidos se conseguem gravar na Carta tais direitos, aproveitando uma circunstância política favorável para garantir benesses e privilégios. Como uma mudança constitucional exige três quintos das duas Casas em duas votações, é mais difícil derrubá-la que leis ordinárias. Daí a pressão para constitucionalizar toda sorte de assunto.
Foi assim que, nos últimos meses, temas sem a menor pertinência num texto constitucional, como o piso salarial de enfermeiros ou os radioisótopos para uso médico, foram parar na Carta, em companhia de presenças ilustres que lá estavam, caso dos portos lacustres, da Polícia Ferroviária Federal e até do Colégio Pedro II.
A diligência dos líderes do Congresso para aprovar PECs de interesse do governo — como a dos Precatórios no ano passado ou a Eleitoral neste ano — acabou por distorcer o trâmite legislativo. Em vez da necessária reflexão que toda PEC deveria exigir, já que implica alterar a lei maior do país, passou a vigorar no Congresso uma espécie de via rápida para aprovar qualquer PEC.
O regimento do Legislativo faz exigências sensatas em nome da reflexão essencial para a aprovação de uma PEC: número mínimo de sessões entre as duas votações em ambas as Casas, necessidade de aprovação prévia nas comissões (entre elas uma Comissão Especial), presença física em plenário para garantir quórum, além de várias outras. Mas tudo isso tem sido ignorado de forma contumaz.
O caminho regimental pelas comissões se tornou ficção. Já houve sessão de um minuto apenas para cumprir tabela. Virou regra a aprovação em duas sessões no mesmo dia, por vezes na Câmara e no Senado — só assim se conseguem aprovar 11 PECs em seis meses. O pouco-caso da atual gestão com as normas contribui para desvalorizar o trabalho do Legislativo e para deteriorar ainda mais a qualidade da Constituição. Não é um acaso que a população tenha uma visão tão negativa do Congresso e da classe política.
O Globo