Quando a pandemia entra em declínio, sopram ventos de guerra. A Rússia invadiu a Ucrânia e rompeu com a esperança global de que as fronteiras não sejam definidas pela força militar, mas por negociações diplomáticas.
Por Fernando Gabeira (foto)
Em 2018, estive em Moscou. Era Copa do Mundo, o que não impediu que eu conversasse com alguns russos sobre outros temas. A Ucrânia, para quase todos com quem falei, era tida como um pedaço da Rússia, uma perda dolorosa.
Putin decidiu completar a tarefa que iniciou em fevereiro de 2014, anexando a Crimeia. É indiscutível sua força militar. No entanto nem sempre a força bruta triunfa, apesar da admiração dos chamados realistas. Funcionou na Crimeia, não funcionou no Afeganistão.
Rússia e China parecem unidas no momento. Cada vez mais, cresce sua importância diante de um Ocidente perplexo. Ambas têm uma visão específica sobre democracia, direitos humanos, liberdades individuais.
Confesso que é uma visão diferente da minha. O que não significa uma certeza de que estejamos no caminho certo neste lado do mundo.
Não tenho espaço para grandes digressões. Outro dia, em Paris, o fotógrafo suíço René Robert, aos 84 anos, morreu na rua, depois de ficar nove horas no frio, sem que ninguém o socorresse. Para mim, é um sinal de declínio civilizatório.
Depois de a Rússia anexar a Ucrânia, a China buscará Taiwan, e o jogo continua. Pretextos nunca faltam. A Ucrânia não entraria na Otan nos próximos dez anos. Putin apenas aproveitou o que lhe pareceu um momento favorável.
Mas será mesmo? Há muitas sanções. O Ocidente pode não se envolver diretamente na Ucrânia, mas fará tudo para que a Rússia pague um preço alto pela invasão.
Os americanos conhecem esse peso, sobretudo na forma dos sacos pretos com os corpos de soldados que voltam ao país invasor, sem contar os gigantescos custos econômicos. Se a Europa encontrar alternativas para a energia que importa da Rússia, se o novo gasoduto para a Alemanha não vingar — variáveis somadas a um relativo isolamento tecnológico, custos de guerra.
Quando Bolsonaro foi à Rússia, escrevi um artigo dizendo que era uma viagem perigosa. Sua inexperiência aumentava os riscos. Aquela frase — “O Brasil é solidário com a Rússia” — não expressa um consenso nacional.
Ele queria dizer que o Brasil era solidário com quem buscava soluções pacíficas. Mas, àquela altura dos acontecimentos, com 150 mil soldados na fronteira com a Ucrânia, Putin não acreditava tanto em saída diplomática.
Neste primeiro momento, a tendência é enfatizar o aumento do preço do combustível e suas consequências na economia.
É pouco, da política internacional à estrategia do agronegócio, o Brasil terá de reavaliar tudo, diante desse fato novo.
Bolsonaro foi à Rússia vender carne e comprar fertilizante, assim como alguns itens militares. Será que valeu? A Rússia está ampliando sua atividade agrícola, favorecida pelo aquecimento global, que torna algumas terras agricultáveis. Que peso terão a partir de agora os negócios militares, sob o impacto das sanções ocidentais?
O fundamento de nossa política externa é a busca da paz e a solução pacífica dos conflitos. Putin rompeu com essa lógica.
É uma situação delicada tanto para o país como para indivíduos. De que lado ficar? O mundo ocidental não é um paraíso. Mas valores democráticos e, sobretudo, o respeito às fronteiras nacionais estão em jogo. Ao Brasil não interessa um planeta onde as potências definam áreas de influência e façam nela o que bem entenderem.
Independentemente do debate que, certamente, o tema inspira, sobretudo num ano de eleições, é fundamental se preparar também para a onda de refugiados que se espalhará para a Europa e, certamente, chegará aos países do Novo Mundo.
É hora de convocar uma ampla reunião de emergência no Congresso para discutir a crise ucraniana no Brasil. O tema transcende a um governo hesitante.
O Globo