Por: Reinaldo Azevedeo Vês?! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão — esta pantera — Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija! Pensei nos destinos do Brasil, o Bananão (o copyright, se não me engano, vai para Ivan Lessa), e me vieram os versos acima, de Augusto dos Anjos, num poema intitulado Autopsicografia. Poetas não devem ser levados muito a sério, especialmente quando extremam seu pessimismo, tentando nos arrastar para sua suposta melancolia. É tudo literatura, tudo fingimento. Fernando Pessoa já se encarregou deste tema também. Um grande poeta e crítico brasileiro (acredito nele!) tem uma tese interessante, que me mandou numa correspondência (de fato, num e-mail), sobre o que pode ser matéria da prosa e o que pode ser matéria da poesia. Não vou adiantar muita coisa aqui porque pretendo que ele a desenvolva na revista Primeira Leitura, num ensaio. Em prosa! Há bobagens monumentais, algumas até perigosas, que rendem versos magníficos. Mas tente dizer a mesma coisa em prosa para ver... Agora afirmo eu: a poesia pode ser densa e frívola. Não conheço ninguém que, com o passar dos anos, não acabe se ancorando na prosa para sobreviver. A poesia vira um suspiro mais profundo e ocasional, um raio luminoso e de curta duração, uma dose de conhaque numa noite fria, uma aspiração tola de felicidade numa viagem que sabemos curta. A prosa nos acompanha até o limite. O próximo passo é o silêncio. Ah, vejam vocês o que não faço para ir-me descontaminando do Apedeuta. Se não levo poetas tão a sério, Augusto dos Anjos menos ainda. Explico-me. Embora sonetista exemplar, é claro que toda aquela verborragia científica era uma mistura de maneirismo com um bem disfarçado — ao menos a maus leitores — humor. Imagine se alguém pode ser sério (refiro-me à seriedade contemplativa, compenetrada) escrevendo: “Tome, doutor, esta tesoura, e corte / Minha singularíssima pessoa. / Que importa a mim que a bicharia roa/Todo o meu coração, depois da morte?”. Convenham: é mais sofisticado do que o Zé do Caixão, mas não menos galhofeiro. A piada já está no título: “Budismo Moderno”, emprestando à filosofia ou religião (sei lá eu) do “deixe-estar e vá meditando” o aporte de sua ciência meio macabra. A crítica literária, os cursinhos e as aulas de literatura dos colégios estragam tudo, acusando seu “amargo pessimismo”. Existe, por acaso, um pessimismo doce? Huuummmm, Cecília Meireles, talvez. Mas aqui já abriria uma chave para outra conversa. Vejo o Apedeuta sumindo... Não disse que estou treinando? Lê-se mal por aí, aqui e alhures. Acho impressionante que a literatura, mormente a poesia, seja entendida, mesmo por especialistas, como expressão da vida do autor ou como depositária de algumas verdades eternas sobre o homem, a vida, a felicidade, Deus, o mundo. Pretende-se até que ela sirva de norte moral ou ético. O que nos diz de definitivo um quadro, uma música ou um filme? Nada! Aliás, o adjetivo “definitivo” é interessante. Os cadernos de cultura dos jornais, especialmente os críticos de rock ou de música pop, costumam decretar “novidades definitivas”, o que é, obviamente, uma contradição em termos. Para alguns, Wagner foi um gênio definitivo; para outros, um impostor. Mas bandas londrinas das quais ouviremos falar uma única vez já vêm à luz “definitivas”. O meu bom mundo é dos homens que nascem não definitivos, mas póstumos — a sacada é de Nietzsche. O que quero dizer com isso? Sou irresistivelmente atraído, na literatura — a única das artes que, de fato, me interessa — pela reinvenção do passado, pela profecia às avessas, que refaz o percurso daqui até as origens. Tenho verdadeiro horror de utopistas. Eles seriam expulsos da minha República sob a mesma acusação que Platão fazia aos poetas. Não há um só regime totalitário que não tenha sido instituído sob a égide de uma história do futuro, de uma profecia. Num dos ensaios de Contra o Consenso, nem me lembro em qual e não vou parar para procurar, digo que tenho particular apreço pela literatura do decadentismo, do desencanto, do pessimismo, por mais fingidos que sejam. Balzac, evidentemente, retratou um mundo em decomposição com maestria, embora fosse um pouco frívolo. Stendhal, em O Vermelho e o Negro, atinge altura raramente equiparada quando evidencia a incomunicabilidade de dois mundos: o de Julien Sorrel e aquele que o destrói — ou que consolida a sua diluição. Flaubert, impecável, desmonta idealismos em penca (incluindo o ideal da melancolia decorosa) em Madame Bovary. A atração de Swann por Odette, uma vagabundazinha bem posta, ou as fuçadas de Sr. de Charlus nos catres imundos, levando chicotadas das classes inferiores, em Proust... Tudo isso é um retrato de autores que não tinham utopias a oferecer. Felizmente! E, claro, Musil (ora, ora...), em O Homem Sem Qualidades, não permite nem mesmo que esse mundo em desalinho se converta num norte a ser seguido ou numa metafísica. Vejam só. Esse é realmente o mundo que me interessa, não essa triste vulgaridade de Lulas, PTs, “sol da liberdade em raios frígidos”, oposições brochas e assemelhados. De certo modo, explico certas convicções políticas expondo algumas preferências literárias. Não há utopia, política ou artística, em que eu não perceba um núcleo de vigarice, de canalhice vertida em promessas, de amanhãs que cantam para pegar trouxa. É um tipo de crítica, seja a política, seja a literária, pouco aceita nos nossos meios intelectuais. São bem poucas as pessoas que alcançam uma verdade para mim inquestionável: não há zelo maior com o mundo — o que inclui o Brasil — do que detestá-lo. Não há safadeza maior do que declarar permanentemente o seu amor pela vida, pela pátria e pelo semelhante. O homem que verdadeiramente ama precisa aprender a odiar algumas coisas incondicionalmente. Meu crânio?Nas partes em que o osso foi retirado, começa a haver um afundamento. Já tinha mesmo desistido de ganhar dinheiro com a minha beleza. Pretendo apenas ser um senhor que usa chapéu. [reinaldo@primeiraleitura.com.br] |
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quinta-feira, junho 01, 2006
Autopsicografia
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