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domingo, outubro 03, 2021

Atração mortal




A dinâmica do “não” deixa como legado de cada eleição um contingente enorme de insatisfeitos

Por Dora Kramer

As posições extremadas na política animam o ambiente eleitoral, quanto a isso não há dúvida. A polarização “dá onda”, ativa a adrenalina geral, como mostra o destaque obtido por personagens adeptos desse tipo de estilo. Usuários da excitação conquistam as melhores posições nas pesquisas sobre intenções de voto.

A forte emoção é um atrativo, mas no caso da eleição de alguém para ocupar a liderança da República por quatro ou oito anos o resultado de tal atração pode ser mortal. O menor dos malefícios é a produção de hordas de arrependidos. O maior são os prejuízos causados ao país por escolhas baseadas em sentimentos exacerbados que interditam os pensamentos.

Gosto de exemplos da história recente. São didáticos e facilitam a compreensão das coisas. Volto à primeira eleição direta pós-ditadura, quando havia 22 candidatos à Presidência à direita e à esquerda, vários com trajetória e reputação sólidas.

A despeito do bom cardápio à disposição — cito apenas dois, Ulysses Guimarães e Mário Covas, para não fazer juízo de valor sobre os vivos —, a maioria optou por um arrivista que soube capitalizar a raiva do brasileiro em relação ao então presidente José Sarney. Bom condutor da transição democrática, ficou marcado pela explosão inflacionária.

Em 1989, Fernando Collor foi quem se colocou de maneira mais agressiva contra o presidente chamado por ele de “batedor de carteira da história”. Não obstante a existência de fatos condenáveis ocorridos nas passagens de Collor pela prefeitura de Maceió e pelo governo de Alagoas e que viriam a ser repetidos em maior escala na Presidência interrompida por impeachment, as pessoas (imprensa, inclusive) deram mais atenção às miragens do “caçador de marajás” que à realidade.

Daí, estabeleceu-se o maniqueísmo: criticar Collor era algo visto como uma maneira de elogiar Sarney. Uma falsa equivalência que, por impulsiva, resultou na pior solução. Trocando o sinal do ódio pelo do amor, tivemos a eleição de Dilma Rousseff — uma inepta de carteirinha —baseada exclusivamente na adoração majoritária por Luiz Inácio da Silva, que saía de dois governos com índice de aprovação de 80%.

“A polarização ativa a adrenalina, mas no voto para presidente esse ‘barato’ pode sair caro”

O tempo passou, o vento virou e chegamos à situação de 2018, quando a maioria de novo se deixou conduzir pela emoção, levando à Presidência um deputado conhecido pela tendência ao destrambelho, sob a alegação de que era preciso evitar a volta do PT ao poder.

Quase três anos depois, as pesquisas indicam preferência por Lula para impedir a reeleição de Jair Bolsonaro. É a adoção do mesmo critério de modo invertido. Tem lógica isso? Primeiro eleger Bolsonaro para rejeitar Lula e depois eleger Lula para repudiar Bolsonaro? Tudo bem se esse eleitorado fosse motivado por ver boas qualidades em um ou no outro e não por razões de repúdio mútuo.

Esse tipo de visão de mundo põe as pessoas na condição de agentes, e ao mesmo tempo as faz reféns, da divisão entre poderes opostos, incompatíveis e vistos como negativos. É a dinâmica do “não” que, no mínimo, deixa como legado de cada eleição um contingente enorme de insatisfeitos.

Governos escolhidos assim já começam sob o signo da desesperança e da turbulência permanente. A continuar nessa toada, o Brasil tão cedo não se reencontra com o rumo da caminhada adiante. Seguirá prisioneiro das exaltações eleitorais. A retomada de um ambiente de razoável normalidade implica necessariamente escolhas minimamente objetivas.

Há um conjunto de atributos a ser levados em conta que certamente estarão ao todo ou em parte presentes em alguns dos nomes que frequentam o atual horizonte das possibilidades presidenciais: capacidade de liderança, de inspiração, de promoção do entendimento, de compreensão sobre os limites do exercício do poder, de enfrentar o contraditório com moderação e, sobretudo, de se conduzir sob a égide do senso de urgência sobre as prioridades nacionais.

Nada de extraordinário. Não é necessário que emerja das articulações em busca de candidaturas alternativas um guia genial dos povos, ninguém que considere que os fins justificam a aplicação de quaisquer meios nem que tenha pretensão de fazer dos brasileiros uma legião de adoradores desprovidos de senso crítico.

Homem ou mulher dotados de preparo, de bom senso e desprovidos do sentimento de ajuste de contas com o passado na atual conjuntura já seria um ganho.

Revista Veja

As imagens dos mil dias do governo Bolsonaro

 



Por Ascânio Seleme (foto)

A primeira imagem foi o escatológico golden shower com a qual Jair Bolsonaro brindou os brasileiros logo no início de seu governo. No dia 5 de março de 2019, o presidente compartilhou em suas redes sociais um vídeo em que um homem urina na cabeça de outro. Fez isso para gratuitamente atacar os blocos de carnaval. Visto de hoje, depois de tudo o que temos passado, aquele compartilhamento absurdo vindo da maior autoridade nacional parece até bobagem. Além desta imagem inaugural, há uma coleção de retratos que explica bem o caráter doentio deste governo.

A série de ataques à democracia e aos Poderes instituídos tem três momentos símbolos. O primeiro foi a manifestação do dia 19 de abril de 2020 liderada por Bolsonaro em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília. A foto síntese tem o presidente em primeiro plano discursando para um grupo de pessoas que levavam cartazes pedindo o fechamento do Supremo e do Congresso, a volta do AI-5 e a intervenção militar. Por isso apenas um processo de impeachment deveria ser aberto por Rodrigo Maia, que nada fez. O segundo momento foi o desfile de tanques fumacentos na Esplanada, e o terceiro, a tentativa fracassada de golpe do dia 7 de setembro passado.

No quesito pandemia, há um sem número de imagens que entristeceram o país. As fotos das sepulturas sendo abertas em escala industrial são as mais duras. Mas há as ridículas também, como a da ema fugindo de Bolsonaro, que lhe ofereceu uma caixa de cloroquina. O presidente fez tudo o que esteve ao seu alcance para sabotar o combate ao coronavírus. O resultado da sua ação deletéria será conhecido em toda a sua extensão no relatório da CPI da Covid, mas estudos indicam que pelo menos 200 mil das 600 mil mortes no pais poderiam ter sido evitadas se o governo tivesse agido de modo contrário.

Ainda no capítulo Covid, a imagem de um pária comendo pizza numa calçada de Nova York virou piada humilhante, não apenas para o presidente desmascarado, mas para toda a nação. O desmatamento e as queimadas na Amazônia também compõem o mosaico que define o esdrúxulo governo brasileiro. A figura do ex-ministro Ricardo Salles tentando fazer passar a sua boiada antiecológica é a peça mais visível deste pântano que virou o que deveria ser apenas amor e devoção ao meio ambiente.

Finalmente, chegamos à imagem que resume de maneira mais cabal o governo Bolsonaro. A foto de Domingos Peixoto do caminhão de ossos sendo escrutinado por miseráveis, publicada na primeira página do jornal Extra de quarta-feira, mostra não apenas a dor da pobreza e da fome que se espalha pelo país, mas a degradação de um governo ineficiente e corrupto. O motorista do caminhão, José Divino dos Santos, explicou assim ao jornal o que mudou de alguns anos para cá: “Antes, as pessoas passavam aqui e pediam um pedaço de osso para os seus cachorros. Hoje, elas imploram por um pouco de ossada para fazer comida. O meu coração dói”.

Embora o índice tenha se recuperado um pouco, há 14,1 milhões de desempregados no Brasil. Segundo o IBGE, em 12 meses cresceu em 5,6 milhões o número de trabalhadores sem remuneração ou que iniciaram trabalhos por conta própria. Estes somam 36,3 milhões de brasileiros, ou 40,8% da população tecnicamente ocupada no país. E o que faz Sua Excelência o presidente da República para reverter este quadro? Nada. Bolsonaro é preguiçoso e não gosta de trabalhar. Prefere viajar pelo país em campanha eleitoral antecipada. O Brasil que se dane.

Atos de hoje

As manifestações de hoje em favor da democracia e contra Bolsonaro ocorrem no dia do nascimento do maior pacifista da história, o indiano Mahatma Gandhi. Os atos, que por sua natureza são essencialmente a favor da vida, da tolerância e da pluralidade, e que todos os brasileiros de bom coração deveriam apoiar, poderiam servir também como uma homenagem ao líder ativista da não violência.

Pressa para quê?

O presidente do Supremo, Luiz Fux, vem pressionando o Senado para que a sabatina de André Mendonça seja logo pautada. Fux alega que o trabalho da Corte está muito pesado e que a qualquer hora pode eventualmente ocorrer um empate em causa que seja relevante, que interesse ao governo ou ao presidente Bolsonaro. Pode ser, ministro, pode dar empate, como pode não dar. Até houve um empate em ação menor envolvendo um ex-deputado. E daí? Daí, nada. O ministro Lewandowski disse que empate em votação beneficia o réu, o que parece bastante razoável. Com Mendonça aprovado, não haveria empates, e nas questões de Bolsonaro, ele sempre seria vencedor.

Lira e Lula

O presidente da Câmara não consegue ficar quieto, mete-se em tudo. A última foi seu pitaco na questão do preço da gasolina. De maneira simplória, propositalmente simplória, apontou o culpado: o ICMS. E disse que a solução é mudar a lei, unificando os valores do tributo em todo o país. Parece haver um interesse escondido aí, que Lira não é bobo. Ele sabe que mudar o ICMS resolve nada no preço dos combustíveis. Outro que enfiou a sua colher foi Lula. O ex-presidente disse que a Petrobras mantém o preço alto porque está acumulando dinheiro para pagar seus acionistas americanos. Lula também tem outra pauta, mas pelo menos a dele é transparentemente eleitoreira.

Passaporte da vacina

Deve ser negacionista o desembargador que derrubou o passaporte da vacina criada pelo prefeito Eduardo Paes como forma permitir que apenas pessoas devidamente imunizadas entrem em locais públicos fechados. Sua Excelência não entendeu que o passaporte é um estímulo à vacinação, e não somente um instrumento para “impedir a liberdade de locomoção”. O desembargador deveria ver como a coisa anda em Nova York, mas talvez ele nem possa entrar nos EUA por falta de vacina. Neste caso, tampouco voaria pela United Airlines, que anunciou a demissão de 593 empregados que se recusam a se vacinar. Sabiamente, o STF derrubou a liminar do magistrado carioca.

Afrouxamento geral

Confirmado pelo Senado o afrouxamento da lei que pune crimes de improbidade administrativa. Com o mesmo argumento usado pelos deputados, de que o crime só ocorre quando ele é intencional, senadores de todos os partidos abrandaram a lei. Agora, roubo só vira crime se ficar provado que a intenção era mesmo roubar. Roubar sem querer pode. Como se sabe, parlamentares de todos os partidos apoiaram a “causa”, mas ninguém como o PT. Na Câmara, 52 dos seus 53 deputados votaram pelo afrouxamento. No Senado, toda a bancada foi a favor da tese de que roubo sem intenção não é crime. Foi sancionada também a lei que permite que políticos que tiveram suas contas rejeitadas sejam candidatos a cargos eletivos. A lei anterior estabelecia inelegibilidade por oito anos para mandatário com contas negadas. Ao sancionar a lei, o Palácio distribuiu nota afirmando que a punição era desproporcional em casos que existe “pequeno potencial ofensivo”. Pois é.

Estátua polêmica

Causou polêmica na Itália uma estátua inspirada num poema do século XVII em que uma mulher se junta a um revolucionário por amor e com ele compartilha o fracasso. A estátua ressalta as curvas, sobretudo as nádegas da mulher apaixonada. A obra causou rebuliço porque muitos a consideraram fruto do machismo e do sexismo do seu autor, Emanuele Stifano. Será? Recomendo uma visita ao cemitério de Père Lachaise, em Paris, para ver o túmulo do jornalista Victor Noir. Ele foi assassinado em 1870, aos 21 anos. Sua morte gerou uma comoção num momento de turbulência política, e ele acabou merecendo um túmulo com estátua no mais célebre cemitério parisiense. Ocorre que o artista Jules Dalou o esculpiu morto, estendido no chão, e, notem bem, com uma ereção post mortem muito visível sob as dobras da calça de bronze. Não houve escândalo na época, nem hoje, quando o túmulo virou local de visita obrigatória. Os que visitam o túmulo de Noir não podem se esquecer de tocar o membro enrijecido da estátua. Reza a lenda que ele é afrodisíaco e ajuda mulheres que querem engravidar.

Entreouvido por aí

Um mineiro de Leopoldina em visita ao Rio deparou-se com uma placa numa padaria no Jardim Botânico anunciando um galeto a R$ 85,00. E era o preço só do galetinho de 300 gramas de carne, pele e osso, sem qualquer acompanhamento. No que o mineirinho não conseguiu se segurar e perguntou para um funcionário da casa: “Isso tudo? Mas o que é que o bichinho faz?”.

O Globo

Novo ato contra Bolsonaro testa maturidade de aliança com 21 partidos pelo impeachment




Manifestação neste sábado reúne de PT a PSDB, DEM e Novo. Representantes têm discordâncias políticas, mas pedem adesão contra o presidente e em defesa da democracia

Manifestação contra Bolsonaro na avenida Paulista, em 3 de julho.

Por Diogo Magri

São Paulo - A frente ampla formada por lideranças de esquerda e direita que se colocam como oposição ao Governo de Jair Bolsonaro testará outra vez sua união nas ruas neste sábado, dia 2 de outubro. É nesta data que o ato convocado com o mote #ForaBolsonaro reunirá figuras de 21 partidos políticos de diferentes espectros em 167 cidades brasileiras. Em São Paulo, o ato acontece na avenida Paulista. Em comum, representantes dos grupos, que vão do PT, PSDB ao Novo e Podemos, pedirão o impeachment do presidente e a defesa da democracia. Mas o desafio será unificar o discurso entre projetos políticos diferentes, acentuados pela polarização que tomou conta do país durante os últimos anos.

A união entre esquerda, centro e direita é necessária se o objetivo dos partidos é o impeachment de Bolsonaro. Juntos, os 21 partidos representados na manifestação somariam 351 deputados federais na Câmara — o total necessário para a aprovação do processo de impeachment é 342 votos. No entanto, internamente diversas legendas estão em guerra, ou com o pé em duas canoas. Partidos como DEM e PSD também se unem ao protesto, mas ambos têm ministérios no Governo Bolsonaro. O mesmo PSL, por exemplo, tem nomes de oposição ao Governo, como a deputa Joice Hasselman, ao mesmo tempo que abriga o filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro , Carla Zambelli e Bia Kicis entre seus parlamentares, fieis escudeiros do presidente.

Já confirmaram também presenças no ato da Paulista nomes dos partidos Cidadania, MDB, PC do B, PDT, PL, Solidariedade, PSB, PSOL, PV, Rede, UP, PCB, PSTU, PCO. Também estarão presentes movimentos populares, como Direitos Já, Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo e Coalizão Negra por Direitos.

As centrais sindicais divulgaram uma nota pedindo “ampliação no espectro político”. “Para derrubar Bolsonaro, é preciso ir além do nosso campo. Não é questão de ideologia, mas sim de matemática. Neste momento, é necessário focar no que nos une, e não no que nos separa”, diz a nota assinada por 10 centrais, entre elas CUT, Força Sindical, e CSP-Conlutas.

O professor de gestão de políticas públicas da USP Pablo Ortellado, vê a chance de dar um passo à frente por uma aproximação mais consistente. “O arco de alianças feito para essa manifestação é muito amplo diante do nosso histórico recente de polarização. É um passo firme na direção da concretização da frente ampla”, explica o professor, que estuda protestos de rua em São Paulo. “É algo realmente novo, que me lembra as Diretas Já pelo caráter suprapartidário. Faz sentido que os democratas, mesmo rivais políticos, se unam para defender o país dos ataques que faz um Governo de perfil autoritário”, acrescenta o cientista político Cláudio Couto.

Couto lembra que o apoio popular precisa ser significativo para a abertura de um processo. Nesse sentido, a união também é essencial. Em 7 de setembro, o protesto contra Bolsonaro organizado por partidos de esquerda e centrais sindicais levou cerca de 15.000 pessoas ao Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo, nos números da Polícia Militar. O ato “Nem Lula nem Bolsonaro”, chamado por lideranças de centro e direita, levou cerca 6.000 pessoas à Avenida Paulista cinco dias depois. Em comparação, a manifestação golpista pró-Governo mobilizou cerca de 120.000 pessoas na Paulista, em 7 de setembro, segundo números da mesma PM. “Se conseguirem levar muita gente com esse mote da frente ampla, estará provada a possibilidade de diálogo entre diferentes que conseguem cooperar quando a democracia está em jogo”, sustenta o cientista político.

Na opinião de Ivan Valente, deputado federal pelo PSOL-SP, “tudo que conseguirmos somar contra Bolsonaro é positivo”. “Essa amplitude entre os partidos tem uma simbologia muito grande. Mesmo a direita e a centro-direita não conseguem defender a estupidez humana”, pontua o psolista. O parlamentar espera que, mesmo diante das divergências e confrontos recentes —militantes do PCO agrediram integrantes do PSDB em manifestação que realizaram em conjunto no dia 3 de julho—, ele espera um ato pacífico com falas de representantes de diversos espectros políticos. “Até pouco tempo atrás, boa parte da direita estava gritando palavras de ordem fascista. Mas não é hora de fazer cobranças. O que vier para somar na luta pelo impeachment, mesmo que da política ultraliberal, será benéfico”.

Eduardo Barbosa, deputado federal pelo PSDB-MG, vai pelo mesmo caminho. “A união desses partidos pela garantia de preceitos constitucionais já existiu em outros momentos. O que mobiliza esse encontro é a visão truculenta do presidente que traz uma insegurança permanente às instituições”, afirma o tucano. Para ele, a concordância de ideais relacionados aos direitos humanos supera a discordância a respeito do tamanho do Estado em momentos como esse. Barbosa também não vê problemas em caminhar ao lado de quem apoia a candidatura de Lula em 2022, mas deixa claro que o objetivo não é formar uma chapa eleitoral com partidos mais à esquerda. “A discussão não se pauta por uma candidatura e nem é o momento para definir isso”, justifica.

Ao mesmo tempo, unificar manifestações de direita e esquerda é o maior desafio da frente ampla. “As disputas eleitorais complicam a constituição da frente, apesar do caráter ser mais de defesa da constitucionalidade do que de chapa eleitoral”, afirma Ortellado. O embate se dá principalmente em torno da figura de Lula, o presidenciável que está a frente nas eleições de 2022 segundo as pesquisas mais recentes. Ainda assim, o petista não é unanimidade entre quem está se mobilizando para o ato de 2 de outubro —partidos de centro, direita e até de esquerda, como PDT, preferem a terceira via como alternativa a Lula e Bolsonaro. “Pelo menos o fato deles estarem conseguindo conversar já é um avanço”, pontua Claudio Couto.

As estratégias divergentes também enfraqueceriam os protestos. Ortellado lembra que para o ex-presidente Lula, poderia ser mais interessante enfrentar um Bolsonaro enfraquecido nas eleições do ano que vem. Logo, o PT poderia escolher não se mobilizar pelo impeachment em prol da vitória em 2022, o que o afastaria da frente ampla. “Além disso, perder uma disputa eleitoral é muito mais afirmativo do que ser deposto”, acrescenta Couto, “mas não acho que esperar o Bolsonaro derreter signifique não ir às ruas. As manifestações, mesmo que não cheguem no impeachment, irão enfraquecê-lo”, diz. Apoiador de uma candidatura única da esquerda, Valente concorda: “Seria um erro crasso de toda esquerda aliviar para deixar ele sangrar... isso é para quem não conhece o que é o bolsonarismo. O PT não tem como não colocar o bloco na rua”.

O Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua estão entre as poucas entidades que organizaram o ato de 12 de setembro e não estarão na rua em 2 de outubro. Segundo o MBL, a entidade está focada em seu congresso nacional, que ocorre nos dias 19 e 20 de novembro. Já o Vem Pra Rua diz que “a manifestação do dia 2 de outubro está sendo chamada e organizada pelo PT com o mote Fora Bolsonaro mas, infelizmente, será também para promover o candidato Lula, a quem jamais vamos apoiar como opção contra Bolsonaro”.

El País

'Falar em socialismo e comunismo no Brasil é ignorância e paranoia', diz ex-preso político que resistiu com Brizola




Tavares: 'Ficam ressuscitando a paranoia do comunismo como se os comunistas tivessem governado o país'

Por Marcia Carmo, De Buenos Aires 

O jornalista, advogado e escritor gaúcho Flávio Tavares sofreu na própria pele a virulência da tortura durante a ditadura militar no Brasil e no Uruguai.

Em 1969, foram choques elétricos num quartel do Exército do Rio de Janeiro. Mais tarde, naquele ano, ele fez parte do grupo de presos políticos enviados ao México em troca da libertação do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick, que tinha sido sequestrado. Menos de dez anos depois, em 1977, Tavares foi sequestrado pelo Exército uruguaio em Montevidéu. Naquela época, o regime ditatorial dominava em quase todos os países da América do Sul.

Antes de ser preso no Rio de Janeiro e exilado, tendo morado na Cidade do México, em Buenos Aires e em Lisboa, Flávio Tavares já havia participado, no Brasil, de um outro episodio histórico. Em 1961, ele resistiu, armado, a convite do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, contra a ameaça de golpe militar. Aquela resistência, opina, acabou adiando o golpe, que ocorreu em 1964.

No Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, o jornalista, que era editor e repórter do jornal Última Hora, participou da iniciativa de Brizola de fazer uma campanha armada - conhecida como "Campanha da Legalidade" - em defesa da posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros.

Hoje, Tavares acha que a situação é diferente em relação àquela época. Mas diz estar preocupado.

Com vários livros publicados, entre eles, Memórias do Esquecimento e O dia que Getúlio matou Allende, Flávio Tavares participou da luta armada durante o regime militar brasileiro (1964-1985). Em entrevista à BBC News Brasil, aos 87 anos, ele disse que seu grupo não soube atrair o apoio popular: "Ficamos isolados e militarmente fomos derrotados. Mas não fomos derrotados historicamente. Acho que historicamente nós vencemos. Até porque hoje a ditadura é um cadáver insepulto. Mas é um cadáver."

De Porto Alegre, onde voltou a morar, Flávio Tavares fez críticas ao presidente Jair Bolsonaro mas também ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT.

Tavares chamou de "paranoia" e "ignorância" falar em socialismo e comunismo no Brasil, como setores do governo Bolsonaro e bolsonaristas argumentam ao condenar o possível retorno de Lula à Presidência.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

BBC Brasil - Seu recente relato à Folha de S.Paulo traz detalhes pouco conhecidos, de que você era um dos cinco repórteres que estavam com o então governador Leonel Brizola quando houve resistência em defesa da democracia, em 1961. Você chegou a estar com uma arma e o próprio governador Brizola com uma metralhadora. Pode contar um pouco mais?

Flávio Tavares - Jânio Quadros renunciou numa sexta-feira, o sábado foi de muita expectativa. No domingo, Brizola anunciou pelo rádio que resistiria, (porque) houve o veto dos ministros militares, dizendo que Jango, o vice-presidente, era simpático ao comunismo e estava na China e não poderia assumir o posto.

Brizola se rebelou e disse que o Rio Grande do Sul iria resistir. E no domingo, sendo o segundo dia após a renúncia, nós esperamos o ataque do Exército à sede do palácio para calar o governador Brizola. E resistimos de arma na mão, com revólveres, e com esses revólveres nós iríamos enfrentar os tanques e as metralhadoras. Só o Brizola tinha uma metralhadora lá em cima, na residência dele no palácio. A Brigada militar do Rio Grande do Sul, com arma na mão no terraço do palácio e a própria população que começou a se alistar no recrutamento voluntário, os chamados comitês de resistência democrática que se estenderam por todo o Rio Grande do Sul e receberam a adesão de pelo menos dez mil pessoas.

Foi o grande movimento de mobilizações de massa contra o golpe. Foi a primeira vez que as massas, que o movimento popular derrotou um golpe de Estado armado, armado com armas, não pleonasmo. Houve uma rebelião para garantir a aplicação da Constituição. Algo insólito. As rebeliões são para quebrar o status quo (mas) essa foi uma rebelião para manter aCconstituição.

Tavares: 'A pretendida reforma agrária foi usada como pretexto para o golpe de 1964'

BBC Brasil - Quem entregou as armas para vocês, cinco jornalistas?

Tavares - Aí já éramos mais de 50 pessoas, na tarde de domingo, quando esperávamos o ataque do Exército, que ainda obedecia às ordens de Brasília. Quem distribuiu (as armas)...foi a mando do governador Leonel Brizola por (parte dos) oficiais da Policia Militar do Rio Grande do Sul, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul. E a população inteira, homens e mulheres, andava armada nas ruas, o que mostrava a disposição de resistir. Retratava a realidade em si. E os sindicatos faziam treinamento corpo a corpo num campo de futebol aqui perto.

BBC Brasil - Um Brasil bem diferente.

Tavares - Um Brasil bem diferente, politizado. Todas as forças políticas se uniram e houve um repúdio absoluto, total contra o golpe. O governo continuou insistindo de Brasília, os ministros militares replicaram e mandaram bombardear o palácio de governo que era a sede de todo o movimento. Havia um movimento dos sargentos, que na época era muito forte, que desarmou os aviões, furou os pneus e escondeu as bombas. Os aviões não podiam decolar e só por isso o palácio não foi bombardeado.

BBC Brasil - No seu relato, você diz que essa atitude coletiva impediu que o golpe ocorresse em 1961 e acabou ocorrendo em 1964. Mas esse período de 1961 e 1964 foi muito turbulento…

Tavares - Sim, porque era um Brasil muito atrasado em termos de compreensão da realidade social. Se formavam cinturões de miséria nos grandes centros urbanos, fruto da concentração da propriedade das zonas rurais do país inteiro e sem que o país percebesse que era necessária uma reforma agrária urgente. A pretendida reforma agrária foi usada como pretexto para o golpe de 1964. (...) Hoje essa situação se repete de outra forma. Hoje há um atraso de certos setores que se incrustaram no governo pelo golpe popular e que ameaçam, diariamente, com a não realização das eleições em 2022. E sob qualquer pretexto e dirigidos pelo próprio presidente da República. Isso é gravíssimo.

BBC Brasil - No dia Sete de Setembro passado chegou-se a temer a ruptura democrática, incluindo golpe militar. Como você viveu essa data?

Tavares - Vivi com muito pesar. Porque é incompreensível que o presidente da República saia de Brasília, no avião presidencial, e vá a São Paulo para participar de uma concentração, que já tinha começado na própria capital, Brasília. É uma manifestação afrontosa à Constituição e à democracia em si.

Tavares: 'Manifestações de Bolsonaro foram a semente para uma tentativa de golpe'

BBC Brasil - No seu livro Memórias do Esquecimento, você conta a experiência de ter sido torturado no Uruguai. Como você vê hoje que nas manifestações de apoio ao presidente há quem peça a volta do regime militar e até o AI5? Por que isso acontece?

Tavares - Antes (do AI5) era uma ditadura envergonhada, de 1964 a 1968. Uma ditadura que tinha vergonha de ser ditadura. E com o Ato 5, de 1968, ela já se instaura em sua plenitude, com torturas, assassinatos, censura à imprensa, o fim do habeas corpus. Só defende (a volta do AI5) quem não conhece a ditadura. A ditadura no Brasil não chegou a assanha da ditadura da Argentina ou do Chile. Mas foi um simulacro de democracia. Havia eleições para vereadores, para os prefeitos das pequenas cidades. Era uma ditadura que fazia eleições e simulava, principalmente para a opinião pública dos Estados Unidos, que tinha sido o grande patrocinador do golpe de 1964. E só quem não conhece aqueles anos terríveis é que defende a volta da ditadura.

BBC Brasil - Você citou a Argentina, que realizou julgamento das 'juntas militares' no governo do presidente Raúl Alfonsín (1983-1989). Essa diferença (pelo fato de o Brasil não ter tido julgamento semelhante) pode, de certa forma, ter aberto o caminho para a chegada de Bolsonaro à Presidência, já que, por exemplo, quando ele era deputado defendeu torturador, no Congresso, e aquela cena seria difícil na Argentina. Qual é sua visão?

Tavares - A anistia que ocorreu no Brasil abrangeu a todos os setores, incluindo os torturadores, e abriu caminho para que as pessoas esquecessem o que aconteceu. A sua pergunta em si já é uma resposta. Os torturadores jamais foram julgados no Brasil, ao contrário do que ocorreu na Argentina onde até hoje, até um ano atrás, havia comandantes militares condenados à prisão, inclusive perpétua, pelas torturas e assassinatos que cometeram. (...)

O Brasil tem essa mania de tapar as coisas, como se a realidade do passado não existisse. Acho que esse é um hábito bem brasileiro. Até hoje não sabemos o que fizeram os bandeirantes, que são tratados como heróis quando foram também criminosos. Desbravaram os sertões brasileiros, cometeram atrocidades contra as populações indígenas, contra populações locais. Então, isso é uma mania viciosa brasileira, de tapar o sol com a peneira.

BBC Brasil - No relato à Folha você diz que a ditadura nos deixou um legado que perdura até hoje, que nos faz confundir democracia com eleição direta. Como você vê a democracia hoje no Brasil?

Tavares - Acho que por um lado se diz que a democracia está consolidada porque as instituições são fortes. Mas as instituições não são uma rocha, uma pedra. As instituições são as pessoas que as compõem. E as pessoas estão cada vez mais desconectadas da realidade brasileira. Até hoje o governo não fez nenhum plano, nenhum programa, nenhum planejamento para vencer as dificuldades. A fome continua se alastrando no Nordeste e também no Sudeste e no Sul do Brasil… Cada vez mais as cidades brasileiras têm mais pessoas dormindo nas ruas. Nas grandes e até pequenas e médias cidades. E não há planos para educação e para empregos para as pessoas que dormem na rua, comem na rua e 'descomem' na rua.

'Tavares: 'Só quem não conhece aqueles anos terríveis é que defende a volta da ditadura'

BBC Brasil - Por que você foi da luta armada? Hoje, aos 87 anos, o que você pensa daquela época em que você tinha vinte ou trinta e poucos anos?

Tavares - Bom, naquela época a luta armada nos parecia uma solução para nos opormos às armas que nos tinham calado. Hoje eu tenho uma outra concepção. Acho que nós ficamos isolados. A realidade mostrou que nós não soubemos nos comunicar com a população. Nós ficamos combatendo a ditadura de forma isolada. Por isso, a ditadura, com o suporte tecnológico que tinha... E nós não tínhamos nada.

(...) Mas nos parecia, de uma ótica que eu acho hoje que foi equivocada, que só podíamos nos opor às armas do poder militar pelas armas do poder popular. Mas não soubemos, não tivemos condições de nos fazer entender pelas grandes massas. Ficamos isolados e militarmente fomos derrotados. Mas não fomos derrotados historicamente. Acho que historicamente nós vencemos. Até porque hoje a ditadura é um cadáver insepulto. Mas é um cadáver.

BBC Brasil - Pode explicar melhor?

Tavares - Hoje sabemos que a ditadura não venceu. Venceu em termos militares, pelo horror das prisões, da tortura e pela censura à imprensa. Nesse sentido, a ditadura venceu (durante o período ditatorial). Mas hoje temos uma grande imprensa livre e em defesa da Constituição.

BBC Brasil - Como você vê a declaração do presidente que entre o feijão e o fuzil, o fuzil seria mais importante?

Tavares - Isso é um absurdo porque é a negação da própria vida, da própria existência. Mas esses disparates estão muito comuns no presidente da República neste momento. Encaram o país como se fosse uma vassoura no quintal, que se varre e está tudo solucionado. (...) O país está sem saída neste momento, em termos políticos. Os partidos estão desacreditados, as esperanças (oferecidas) se transformaram em um grande embuste. Uma roubalheira enorme durante o governo de Lula, durante o chamado governo do Partido dos Trabalhadores...

'Tavares: 'Lula implantou a desfaçatez'

BBC Brasil - Naquele episódio de 1961, quando Brizola tomou a iniciativa da 'Campanha da Legalidade', era uma defesa contra um possível avanço do Exército. Qual a diferença, na sua visão, do Exército daquela época e de hoje?

Tavares - Naquela época, o Exército, do meu ponto de vista pessoal, era muito mais aberto do que hoje é. Não tinha sofrido ainda os 21 anos da ditadura militar em que as escolas militares adotaram o sistema norte-americano de educação, na caserna e fora da caserna.

Vou citar um exemplo. No Rio Grande do Sul (em 1961), o chamado Exército pelas forças dos Estados do Sul, cuja sede é em Porto Alegre, ficou a favor da Legalidade. Mas a pressão veio debaixo. Em Porto Alegre, os capitães que comandavam as chamadas companhias, jargão militar, foram ao gabinete do comandante e disseram que estavam a favor do respeito à Constituição e da posse do vice-presidente Joao Goulart. Isso foi um motivo fundamental para que o Exército, que hoje se chama Comando Militar do Sul, ficasse a favor da Legalidade de 1961.

E hoje a educação militar não mudou. Ao contrário do que houve na Argentina, por exemplo, onde as academias militares foram modificadas a partir do governo Alfonsín. Não sei como estará hoje. Mas aqui não, não houve isso. Continuou a educação imposta durante os 21 anos da ditadura militar. Isso é fundamental, mas as pessoas não dão muita importância.

BBC Brasil - Você entende que aquela união da população em defesa da democracia, que ocorreu em 1961, e que na sua visão contribuiu para adiar o golpe de 1964, não ocorre hoje. No entanto, as manifestações têm sido frequentes no Brasil, ou a favor ou contra o governo Bolsonaro. Qual é a diferença entre os dois períodos - 1961 e agora?

Tavares - A diferença é que as manifestações contra o Bolsonaro, por exemplo, continuam divididas. A chamada esquerda, capitaneada pelo PT, e que eu acho que não tem nada de esquerda, não participou das manifestações agora, semanas atrás em São Paulo, e que foram feitas pelos dissidentes do bolsonarismo.

(...) Para mim, o PT tem características de divisionismos. O que não for uma iniciativa dele, PT, 'não vale'. Então, ficaram setores (de ex-)bolsonaristas reunindo dez mil pessoas nas ruas de São Paulo e contra o Bolsonaro. E o PT desdenhou.

BBC Brasil - Você é crítico de Bolsonaro e também de Lula?

Tavares - Sou sim, muito crítico. Acho que Lula implantou a desfaçatez. Lula disse, textualmente, 'nunca os bancos lucraram tanto quanto na minha gestão como presidente'. Os bancos representam o setor financeiro. As instituições bancárias são o tem de mais maligno no capitalismo...

BBC Brasil - Como você fará na eleição de 2022, se a disputa for entre Bolsonaro e Lula?

Tavares - Mas há um movimento muito grande, que começa a crescer no Brasil, pela terceira via. (...) Eu, pessoalmente, acho que o grande candidato seria o (ex-governador e ex-presidenciável) Ciro Gomes. Ele é um homem lúcido que tem plano de governo e uma visão do que seria o país tanto nas áreas econômica como a social.

BBC Brasil - Você diz que o Brasil busca reinventar uma espécie de nova Guerra Fria (de oposição entre capitalismo e comunismo). No Sete de Setembro, o ministro-chefe do Gabinete Institucional da Presidência, general Augusto Heleno, disse, nas redes sociais, que eles, bolsonaristas, estão tentando evitar a volta da socialismo. Qual é a sua opinião?

Tavares - Pois é. A volta do socialismo, a volta do comunismo.... Mas o Brasil nunca foi socialista. Tentou reformas sociais muito tênues, necessárias para a estabilidade do próprio país e da própria população. As reformas sociais implementadas a partir do governo (José) Sarney... E nunca foi estabelecido o socialismo. Isso é um absurdo. Reflete, inclusive, a ignorância do setor governamental atual do Brasil. O general ressuscitando a paranoia do comunismo, como se os comunistas tivessem governado o país, tivessem implementado o socialismo. Isso nunca ocorreu.

(...) Eu vejo o Brasil muito confuso, sem que as pessoas saibam para onde ir. Os partidos políticos não têm significado nenhum. Ninguém morre por qualquer partido político aí, nem põe o corpo para defender qualquer partido político. Viraram aglomerados de pessoas em busca do poder.

'Tavares: 'Eu vejo o Brasil muito confuso, sem que as pessoas saibam para onde ir'

BBC Brasil - Essa situação que você descreve hoje é resultado da própria trajetória brasileira? A situação em 1961, o golpe de 1964, os 21 anos de ditadura militar, o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff...

Tavares - Eu acho que é. É uma decepção geral e que criou a confusão. O Brasil hoje não está em guerra, em luta, mas está confuso. E a confusão é o detalhe mais perigoso da história. As pessoas não saberem para onde ir. O povo chegou em uma encruzilhada em que há vários rumos e não sabe para qual seguir porque todos levam ao mesmo desengano. É a situação atual que eu vejo hoje no Brasil, pelo menos em termos muito pessoais.

BBC Brasil - Você ficou com alguma sequela daqueles anos de tortura?

Tavares - Sequelas aparentes, não. Mas eu fui pendurado, torturado, no Uruguai, onde nunca morei. Estava em Montevidéu numa missão humanitária para libertar um jornalista que tinha sido preso por uma matéria que tinha escrito no meu jornal e fui sequestrado e sofri muita tortura no Uruguai.

A única sequela visível com que fiquei foi da 'penduração'. Tenho meu lado esquerdo permanentemente dolorido. Até já me habituei à dor em si. Consigo suportá-la. Faço pilates e fisioterapia e isso atenua. Agora, a grande sequela com que eu fiquei foi desaparecendo aos poucos. Quando eu ouvia um carro da polícia eu ficava nervoso. Mas eu tenho uma força de vontade bastante grande. No Uruguai, fiquei 26 dias algemado e de olhos vendados. Eu comia de olhos vendados e algemado. Dormia de olhos vendados e algemado. Foram 26 dias. E depois mais cinco meses e meio preso.

BBC Brasil - O que você diria às pessoas que defendem o AI-5 e a volta da ditadura?

Tavares - Eu diria que só se defende a volta da ditadura quem desconhece a ditadura. Desconhece o horror da ditadura, seja de esquerda, de direita. A ditadura em si é uma afronta à condição humana. O torturador é um psicopata.

BBC Brasil

Oposição a Bolsonaro mostra força, mas "frente ampla" ainda engatinha

 




Manifestantes pediam o impeachment de Bolsonaro

Termômetro das manifestações no país, Avenida Paulista tinha nove carros de som, dos quais oito eram de esquerda

Atos levaram milhares às ruas em todo o país. Partidos variados participaram da organização, mas em São Paulo esquerda se destacou. Analistas questionam viabilidade de união suprapartidária contra o presidente.

Os protestos de rua realizados neste sábado (02/10) em diversas cidades do país e do exterior contra Jair Bolsonaro, a exatamente um ano das eleições de 2022, mostraram que a oposição ao governo segue capaz de levar pessoas para a rua, mas que uma "frente ampla" substantiva contra o presidente ainda está distante.

A pauta dos atos deu ênfase à crise econômica e social do país, com menções aos preços da gasolina e do gás de cozinha, à fome e ao desemprego. Na Avenida Paulista, uma estrutura inflável em frente ao Museu de Artes de São Paulo (MASP) representava um grande botijão de gás, com o preço de R$ 125.

Também eram presentes faixas e palavras de ordem pelo impeachment do presidente, apesar de faltarem as condições objetivas para isso no momento. Bolsonaro segue com apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a quem cabe deflagrar o processo de impeachment, e de parte significativa do Congresso e do Centrão.

Organização diversa, público nem tanto

Os atos deste sábado tiveram um arco de organizadores mais amplo do que as manifestações antibolsonaristas que vinham sendo convocados pela centro-esquerda e esquerda desde maio, puxados inicialmente pelas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo e pelo PSOL e que depois ganharam o apoio do PT e outras legendas.

Neste sábado, participou ativamente da organização, por exemplo, o Solidariedade, que apoiou o impeachment de Dilma Rousseff e chegou a indicar pessoas para cargos de segundo escalão no governo Bolsonaro, mas agora sinaliza apoiar a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. A legenda é presidida pelo deputado federal Paulinho da Força (SP), que também é presidente licenciado da Força Sindical. Além do PT, do PSOL e do Solidariedade, estavam na organização dos atos deste sábado PC do B, PSB, Cidadania, PV, Rede e PDT.

As manifestações também tiveram o apoio do grupo Direitos Já!, criado em 2019 e que reúne dezenove partidos à esquerda e à direita, incluindo o PSDB, o PSL e o Novo. O movimento Acredito!, uma das iniciativas de "renovação da política", participou do ato. No carro de som, discursos ressaltaram a importância de ter "pessoas de todas as cores" contra o governo.

'Protestos tiveram muitas críticas à crise econômica e referências à inflação'

"Temos muitas divergências, mas temos uma unidade. Não queremos mais Bolsonaro governando este país", afirmou a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, de cima do caminhão de som. "O grito de hoje não é um ponto final, mas o início de uma caminhada que une os diferentes contra um desgoverno que quer restringir liberdades", disse a senadora Simone Tebet (MDB-MS), em mensagem gravada reproduzida em São Paulo.

O vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), enviou mensagem reproduzida no ato em São Paulo. "Esse Brasil exige união de todos os democratas. O lado certo é o lado da resistência, da denúncia dos desmandos do atual governo", afirmou. O ex-senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) também enviou um vídeo com sua fala.

A participação de siglas à direita, porém, foi fragmentada e restrita a algumas pessoas. Lideranças importantes desse campo, como o governador paulista João Doria, do PSDB, não compareceram – ele estava fazendo campanha das prévias do PSDB em Minas Gerais. O Livres, movimento liberal suprapartidário, tampouco foi aos atos.

Márcio Moretto, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, foi ao ato da Paulista fazer uma pesquisa de campo e relatou à DW Brasil que havia nove caminhões de som na avenida, dos quais oito tinham uma clara orientação à esquerda.

No carro de som central, em frente ao MASP, ele notou um "esforço grande" dos organizadores para compor uma frente ampla de oradores, "mas os manifestantes não estavam tão abertos a essa amplitude toda". Ciro Gomes, do PDT, foi bastante vaiado durante a sua fala, assim como Paulinho da Força.

Em termos de comparecimento, as manifestações deste sábado foram significativamente mais amplas do que as de 12 de setembro, quando os grupos de direita Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem Pra Rua, que haviam convocado atos para aquela data, tentaram atrair setores da esquerda mas não encheram as ruas . Naquela oportunidade, não houve envolvimento direto de partidos na organização, e esquerdistas evitaram engrossar atos que tinham originalmente o mote "Nem Bolsonaro, nem Lula" – que foi retirado pelo MBL na véspera.

Mas, na Avenida Paulista, a impressão de Moretto é que o ato não superou o número de apoiadores de Bolsonaro que foram ao local ouvir o presidente no feriado de 7 de setembro. Na ocasião, os bolsonaristas adotaram como estratégia concentrar os protestos em São Paulo e em Brasília, em vez de se dispersar em cidades variadas, e a Polícia Militar estimou um público de 125 mil pessoas na capital paulista.

Segundo o portal G1, neste sábado foram registrados atos em 84 cidades do país, incluindo as 27 capitais. A Polícia Militar de São Paulo calculou um público de 8 mil pessoas na Avenida Paulista, enquanto os organizadores estimaram o público em 100 mil pessoas.

"Abaixo da expectativa"

O cientista político Bruno Bolognesi, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), avalia que os atos deste sábado ficaram abaixo da expectativa que havia sido criada pelas legendas em torno de uma suposta capacidade de mobilização da "frente ampla", e não foram capazes de oferecer uma "resposta satisfatória" diante dos atos bolsonaristas de 7 de setembro. "Não foi o suficiente para botar pressão e dizer 'somos maiores, temos mais gente'", diz.

Ele é cético quanto à tentativa de criação de uma "frente ampla" contra Bolsonaro comandada por partidos, que no Brasil, diz, em geral não refletem de forma orgânica as suas bases nem têm capacidade de mobilização de militantes.

"É uma ilusão achar que uma frente com 15 partidos vá mobilizar, pois não estamos em um país onde os partidos fazem sentido para seus militantes. O que mobiliza no Brasil são líderes carismáticos", diz. Bolognesi nota que a eventual ida de Lula ao ato poderia alavancar a participação de mais pessoas, mas o petista não tem ido às manifestações "por questões estratégicas de sua campanha".

Ele considera a tentativa de "frente ampla" "capenga", pois "o que aparece nas ruas não é frente ampla, é a esquerda, pois a direita e a centro-direita não conseguem mobilizar".

Bolognesi acrescenta que outro motivo para os atos deste sábado não terem sido mais cheios é que a pauta do impeachment de Bolsonaro perdeu força, pois "institucionalmente não há nenhuma vontade de fazer isso acontecer", o que teria um efeito desmobilizador.

"Diante das circunstâncias, um sucesso"

A cientista política Márcia Ribeiro Dias, professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), tem uma avaliação diversa e diz que, diante de desafios atuais para levar a oposição a Bolsonaro às ruas, os atos deste sábado tiveram resultados muito positivos.

Entre esses desafios, ela menciona que o campo de oposição ao presidente está dividido entre um polo em torno de Lula e um polo de centro-direita que não aceita o ex-presidente como um possível líder de uma "frente ampla".

Além disso, Dias afirma que a prática de realizar protestos em finais de semana, segundo ela introduzida pela direita durante os atos pelo impeachment de Dilma, acabou sendo adotada pela esquerda, mas desfavorece esse campo. "A tradição da esquerda era fazer manifestação de dia de semana, para o trabalhador ir depois do expediente, para atrapalhar e chamar a atenção. É outra coisa mobilizar durante o final de semana", diz.

A professora da UniRio acrescenta que há pessoas que fazem oposição a Bolsonaro que ainda preferem não ir às ruas por causa da pandemia, e que mesmo assim as manifestações foram muito maiores do que as do dia 12 de setembro, convocadas por MBL e Vem Pra Rua. Ela também considera os protestos deste sábado mais significativos que os atos bolsonaristas de 7 de setembro, considerando a amplitude nacional. "Acho que foi um sucesso", diz.

O momento do governo Bolsonaro

O presidente enfrenta a sua pior aprovação popular desde o início do governo. Pesquisa realizada pelo PoderData em 27 a 29 de setembro mostra que 58% dos brasileiros consideram seu governo ruim ou péssimo, maior taxa desde que ele tomou posse. É a terceira pior marca para um presidente neste momento do mandato, e só perde para Michel Temer e José Sarney.

A alta na sua desaprovação ocorre em um momento de crise econômica no país, que vê a inflação anual se aproximar de 10%, com alta no preço de alimentos e da energia, como gasolina, gás e eletricidade – este último, em função da crise hídrica – e mais de cinco meses de uma CPI no Senado expondo má gestão e suspeitas de irregularidades na condução da pandemia de covid-19, que se aproxima da marca de 600 mil mortos.

A taxa de desemprego atingiu seu recorde da série histórica no trimestre encerrado em abril, em 14,7%, e recuou para 13,7% no trimestre encerrado em junho, mas ainda atinge 14,1 milhões de pessoas. Em abril, havia cerca de 27,7 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza, o equivalente a 13% da população, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas divulgada em setembro – em 2017, essa taxa era de 11,2%.

O auxílio emergencial, transferência de renda mensal criada em abril de 2020 para amparar as famílias mais pobres afetadas pela pandemia, está programado para terminar neste mês de outubro. Bolsonaro chegou a anunciar que o substituiria por um novo programa Bolsa Família, com maior valor e para mais beneficiados, mas dificuldades orçamentárias e políticas do Planalto reduziram as chances de isso ocorrer. O governo estuda prorrogar o auxílio emergencial por mais alguns meses.

Por outro lado, além do prestígio junto ao presidente da Câmara, que protege Bolsonaro de um impeachment, a parcela da população que avalia sua gestão como boa ou ótima está estável há vários meses em cerca de um quarto da população. Quando Dilma foi afastada do cargo de presidente, 13% consideravam seu governo ótimo ou bom, e Fernando Collor deixou o Palácio do Planalto com essa taxa em 9%

Deutsche Welle

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