Publicado em 13 de dezembro de 2025 por Tribuna da Internet
Golpismo persiste, mas o país amadureceu, afirma Fico
Míriam Leitão
O Globo
O historiador Carlos Fico acha que ainda não se pode dizer que o golpismo militar acabou, mas admite que o país amadureceu. Ele dá uma lista de medidas que precisam ser tomadas para fortalecer a democracia brasileira e conta o que deve ser mudado no artigo 142 da Constituição, que tem sido visto pelos militares como dando poder a eles de tutelar o poder civil.
Fico começou a escrever anos atrás um livro de História sobre todas as ameaças feitas pelos militares contra a ordem democrática durante a República, o “Utopia Autoritária Brasileira”. Acabou escrevendo um livro que trata do tempo presente, porque houve novo atentado à democracia.
Miriam – Por tudo o que o senhor estudou para escrever este livro e viu agora dos acontecimentos recentes, como responde à pergunta: o golpismo acabou?
Fico: Infelizmente, eu acho que não. A gente precisaria ainda de várias coisas para mudar essa cultura política muito entranhada não todos, mas em alguns setores militares.
Acho que ainda há risco enquanto a gente não operar essas mudanças. Não tenho dúvida que agora esse último episódio com o julgamento e sobretudo com o julgamento que ainda virá no Superior Tribunal Militar, isso tem funcionado como um alerta para as Forças Armadas.
Algo mudou, porque pela primeira vez militares golpistas, que tentaram, efetivamente, dar um golpe, foram devidamente punidos. No ambiente da democracia, com um processo regular na justiça, com a garantia de ampla defesa contraditória. Então, isso nunca aconteceu antes, é inédito, funciona como um alerta, mas infelizmente eu acho que outras medidas seriam necessárias.
Esse devido processo legal é importante, porque no seu livro mesmo você lembra de outros casos de ex-presidente que foram presos como Hermes da Fonseca, Arthur Bernardes….
Fico: Hermes da Fonseca era militar e ficou preso só 24 horas. Foi preso depois da tentativa de golpe 1922, mas isso não prosseguiu, ele inclusive morreu em 1923, ainda com o inquérito em andamento. O Artur Bernardes também foi preso, mas foi pelo poder executivo, foi exilado arbitrariamente em 1932.
Depois a gente teve também o caso do presidente Carlos Luz em 1955, que foi deposto pelo General Lott e o Café Filho também, que foi ficou “preso” em seu apartamento em Copacabana, uma coisa totalmente irregular. A gente nunca teve um processo efetivo pela justiça regular contra pessoas militares acusadas de golpe de Estado.
Dessa vez teve a investigação, teve a denúncia do Ministério Público, teve amplo direito de defesa, todo o processo e o julgamento. Nesse aspecto é realmente inédito na história do Brasil. Foram presos não só o ex-presidente, como vários dos seus auxiliares militares e também civis, mas militares de alta patente, ex-ministro da defesa, ex-comandante do exército, ex-comandante da Marinha.
Fico: Oficiais generais serem punidos pela justiça civil diante de um processo regular, é totalmente inédito, ainda mais em se tratando do crime de golpe, de tentativa de golpe. Então isso mostra um certo amadurecimento.
Desde a Constituição de 88, com todas as mudanças que houve no Ministério Público, na própria Polícia Federal, o empoderamento do Supremo Tribunal Federal, tudo isso garantiu paulatinamente o que eu chamo de pedagogia democrática, fortalecimento das instituições. O governo Bolsonaro teve esse problema de ter interrompido essa experimentação democrática, com ataque a direitos humanos, com toda aquela anarquia institucional que foi o governo dele. Além da epidemia mal conduzida, além dessa coisa autoritária e golpista, a interrupção dessa vivência, dessa experiência democrática que vinha desde o fim da ditadura militar, foi um prejuízo tremendo.
Os movimentos do ex-presidente Jair Bolsonaro, eles eram óbvios, principalmente para quem viveu uma ditadura militar. Ele ia sempre a todas festividades militares, lembrava a posição de comandante supremo, chamava de “meu exército”. Claramente ele estava fazendo a cooptação. E e muitos se deixaram cooptar, muitos quadros de elite das Forças Armadas se deixaram levar. Por que foi foi fácil produzir uma coisa assim?
Fico: Porque existe, infelizmente, em alguns setores militares, sobretudo das gerações mais antigas, os oficiais generais em geral, essa cultura política, essa interpretação equivocada do artigo 142 que eles muitos ainda entendem como um direito de intervenção na política. É um ambiente em que é fácil prosperar esse tipo de ativismo político, quando se trata de um governo militarista como foi o governo Bolsonaro. E por isso que é preciso fazer uma série de coisas. Por exemplo, a gente precisaria ter comissões no Senado e na Câmara mais atuantes. Comissões de defesa nacional do Senado e da Câmara não têm parlamentares no momento, que conheçam profundamente essa realidade. Precisaria para fiscalizar as atividades, o Plano Nacional de Defesa e tudo mais. A gente precisaria que o sistema de ensino militar fosse mais, pelo menos, permeável a críticas.
Porque a gente tem situações, por exemplo, as interpretações de geopolítica no ensino militar são muito precárias em função do que eles aprendem com história, sociologia, relações internacionais. Isso precisaria mudar, ser mais permeável para que a sociedade civil pudesse pelo menos criticar. Não é para fazer proselitismo esquerdista na AMAN, é para a gente poder ver e criticar esse tipo de sistema de ensino.
O Congresso Nacional, o sistema de ensino, uma coisa importantíssima, até pelos meus contatos com oficiais mais jovens, seria o reconhecimento do erro, o reconhecimento da realidade. A ditadura militar existiu. O golpe de 64 foi um golpe. Houve tortura, reconheçam isso. Nem estou falando em perdão, mas reconhecer o óbvio. A verdade histórica. Isso permitiria que os oficiais mais jovens que têm vocação dessem um passo à frente, deixassem de lado esse passivo tão negativo.
Já perguntei a militares, a generais, porque vocês carregam esse peso. Por que carregar?
Fico: Por que é importante mudar essa cultura política? Muita gente fala que não é importante mudar as disciplinas. Bom, tem essa importância que eu mencionei, mas essa interpretação equivocada se reproduz no ambiente da caserna, no ambiente dos quartéis. Algumas coisas, digamos, mais fortes precisariam ser feitas. Uma delas, que eu sempre repito, é mudar o trecho do artigo 142.
O historiador José Murilo de Carvalho dizia que, desde a primeira Constituição da República, vem a ideia de que o poder moderador que era do imperador foi herdado pelos militares. E esse tipo de equívoco ambíguo sempre esteve nas constituições. Como mudar o artigo 142 sem o risco de piorar, quer dizer, abrir uma caixa de pandora?
Fico: Acho muito simples, porque na verdade a passagem problemática do artigo 142 é apenas a expressão garantia dos poderes constitucionais. Tire-se isso. Porque ninguém sabe o que é. A garantia da lei da ordem, tem uma lei. A lei complementar regulamenta essa passagem da, agora garantia os poderes constitucionais é o quê? Ninguém sabe. Tem lei complementar? Não tem lei complementar.
Eu vou mostrar que isso aconteceu em praticamente todas as tentativas de golpe. Porque o atual 142 teve outros números em outras constituições da república. Com a mesma ideia, desde a primeira Constituição republicana. Isso sempre foi o pretexto e daí a importância que haveria em se alterar essa essa passagem.
Na apresentação do livro, você afirma: “O exército brasileiro sempre desrespeitou a democracia. As Forças Armadas violaram todas as Constituições da República”.
Fico: Está na Constituição, é claro que isso vem desde o fim da da guerra do Paraguai, por isso que no livro, logo no início, eu recuo um pouco antes da proclamação da República, porque eles voltaram da guerra, se o desprestigiados e houve uma série de crises políticas que levaram, inclusive, à proclamação da República que foi um primeiro golpe militar.
Quando foi redigida a primeira Constituição, eles estavam assim à frente de toda a cena política e tiveram, inclusive, muitos militares na Constituinte de 1891 e, por isso, essa prerrogativa, o artigo que hoje é o 142, na primeira Constituição republicana, aparece numa posição nobre, que é o artigo número 14 e lá já está que eles só obedecem ao poder civil dentro dos limites da lei.
Essa passagem, inclusive, só conseguiu tirar na Constituição de 1888. É porque até então existia além da tal garantia dos poderes constitucionais. Quem que julgava? Eles. “Ah, essa ordem não vamos obedecer porque não é legal”. Um absurdo.
O que você acha que vai acontecer no Superior Tribunal Militar, que vai julgar esses militares, inclusive o ex-presidente Jair Bolsonaro por indignidade para oficiais. Não é o mesmo crime sendo julgado pela segunda vez, que isso não é permitido. Mas é o outro crime, é o crime dentro do código militar.
Fico: Indignidade ou incompatibilidade com o oficial é o que vai ser julgado. Se eles considerarem que os condenados são dignos ou compatíveis com o oficialato, não vai deixar de ser uma contestação, uma confrontação da própria pena, da decisão do Supremo Tribunal Federal. Sempre disse, muito antes do término desse julgamento, que esse posterior julgamento, que só deve ocorrer no ano que vem, vai ser muito mais polêmico, muito mais até interessante de acompanhar, porque provavelmente alguns ministros, especialmente os ministros militares do STM, vão ver com alguma benevolência esses condenados. Vários desses ministros conviveram com os militares condenados.
Esse julgamento tem um peso muito grande, eu diria até que maior do que o julgamento civil para os militares. Perder o posto e a patente é um julgamento quase que de honra.
A gente vai ter uma prévia disso, quando houver o trânsito em julgado dos coronéis da polícia militar do Distrito Federal, que já tem o voto do ministro Moraes. Se houver a condenação em definitivo, eles perdem automaticamente o posto a patente sem precisar ir ao STM.
Porque se trata de uma sentença que já menciona a perda do posto a patente, no caso da PM, quando se trata de ações iniciadas em outra instância, vai ao tribunal. São Paulo, Minas Gerais estados de Rio Grande do Sul têm tribunais estaduais militares. Nesses casos há julgamento nessa instância. No caso atual, como se trata de uma sentença que provavelmente transitará em julgado pelo próprio Supremo, isso vai como uma condenação, como uma decisão anexa.
Agora, olhando para a história do Brasil e para todas as vezes em que situações semelhantes foram deixadas passar, por que desta vez fomos tão longe? Isso se deve ao ministro Alexandre de Moraes ou ao contexto? Em outras palavras: é o homem ou as circunstâncias?
Fico: Tem um aspecto que é a abundância de evidências. O governo Bolsonaro e todo esse ativismo político dos militares, a militarização do governo, o excesso de cargos e as iniciativas golpistas tão claras, evidentes e públicas. A contestação de decisões do Supremo Tribunal Federal, as ameaças à institucionalidade, as ameaças a pessoas. Tudo isso foi feito de maneira pública e depois ainda a abundância de provas que eles próprios produziam que foram sendo conhecidas, graças ao inquérito da Polícia Federal. Quer dizer, é uma coisa tão óbvia.
No caso em questão, houve produção de diversas evidências — e-mails, áudios, conversas, croquis, planos e gravações. Fiquei refletindo sobre o motivo de terem acumulado tanto material e preservado minutas e documentos. Uma hipótese é que havia um elevado grau de confiança na própria impunidade, o que poderia explicar por que mantiveram esses registros por tanto tempo
Fico: Isso é realmente uma coisa absurda. Não havia como só uma pessoa muito ingênua poderia supor que não houvesse condenação. É, porque os vitoriosos adoram ter esse tipo de prova para dizer: “A iniciativa foi minha”. É incrível, nessa sucessão de 15 golpes que eu que eu descrevo nesse livro, sempre houve uma exuberância de produção de material que depois ou desaparece quando ele são derrotados ou são usados para demonstrar o predomínio dessa ou daquela iniciativa. Então, isso acontece sempre e aconteceu agora também.
Você acha que o STF tem exercitado de suas funções? Tem críticas de que o julgamento não podia ser a primeira turma, tinha que ser o plenário.
Fico: Não. O que acontece é o seguinte, essa história dos militares considerarem poder moderador, tem uma fundamentação em ciência política, em história constitucional e tudo mais, que é o seguinte: na democracia tem que ter algum tipo de arbitramento de conflitos quando eles surgem é entre os poderes.
E a única solução possível para uma existência efetivamente democrática é que esse arbitramento seja feito pela justiça, pelo poder judiciário, melhor dizendo, pela Suprema Corte, pelo Supremo Tribunal Federal. É assim que funciona nas democracias consolidadas, democracias ocidentais e tal.
As decisões do Supremo Tribunal Federal podem passar por essas críticas todas, mas não há como contestá-las porque não há outra saída. Vai se dar esse arbitramento a quem? Aos militares, por exemplo, que consideram, interpretam equivocadamente a tal passagem do 142?
Não, a única solução é a atuação arbitral do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição. Então, não há como. O que a gente pode fazer é discutir uma série de coisas e esperar que a harmonia entre os poderes, portanto, com a participação também do Congresso e da próprio poder judiciário resolva alguns aspectos que nos pareçam. Por exemplo, excesso de decisões monocráticas ou é que a decisões fundamentais não sejam tomadas pelo plenário. Tudo isso tem de ser discutido e eventualmente reformado. Mas o questionamento das decisões do Supremo é é inviável para democracia.
Você anunciou que será seu último livro. Por que com uma pessoa no auge da sua capacidade intelectual, resolve que vai parar de escrever?
Fico: Não vou parar de escrever, eu vou continuar escrevendo artigos acadêmicos, mas dão livros de grande fôlego. Para não me tornar repetitivo e para ter uma saída, vamos dizer assim, elegante, eu decidi fazer esse livro voltado para o grande público, dialogando com o grande público, tentando fazer uma escrita não acadêmica, como uma espécie de fecho da minha carreira também como historiador público. Eu sempre investi muito nisso. Fazer a história acadêmica, mas também estar na imprensa, estar conversando com o público, estar nas redes sociais.