Publicado em 16 de fevereiro de 2023 por Tribuna da Internet
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Salman Rushdie, cego de um olho, após o último atentado
Fernando Schüler
Veja
Salman Rushdie está de volta. Ele reapareceu, depois de longa recuperação, com algumas cicatrizes e um tapa-olho cobrindo a lente dos óculos. Durante um longo tempo, Rushdie foi um homem marcado para morrer. Depois de lançar seus Versos Satânicos, em 1988, recebeu a fatwa, a condenação do aiatolá Khomeini. No início viveu recluso. “Nos primeiros meses nos mudávamos a cada três dias”, conta, “e logo me vi sozinho, vivendo em uma casa cercada por policiais”.
Com o tempo, foi relaxando. Mudou-se para Nova York, em 2000, e decidiu que “tinha uma vida para viver”, e não o faria sob a lógica do terror.
ESPIRITUOSO E MODESTO – Tive a rara chance de conhecê-lo, no Brasil, em 2014, e guardo a memória de um homem espirituoso e modesto, em sua fala, dizendo que, “se o mundo por vezes busca nos estreitar, a literatura nos lembra que somos amplos”. Mas seu destino estava marcado. Três décadas se passaram, até que o longo braço do fanatismo o pegou.
Em agosto de 2022, foi esfaqueado quando se preparava para falar em uma escola próxima a Nova York. Foram quinze facadas, que lhe fizeram perder o movimento de uma mão e o olho direito.
Sua volta é uma redenção. A vitória do “espírito humano”, na frase de Winston Smith, o herói de Orwell, em 1984, a seu torturador, quando estava por um fio. Rushdie também esteve por um fio, e só consigo pensar nele como um herói de verdade, em nossa tradição iluminista.
Ainda que assustadora a história de Rushdie pode, estranhamente, nos tranquilizar. Em primeiro lugar pela reação do mundo intelectual. Quando um ato trágico e desumano acontece, aprendemos alguma coisa. Enxergamos uma face da barbárie, e com isso abrimos caminho à frente.
INTOLERÂNCIA – Há algo também tranquilizador por um motivo duvidoso: a agressão que ele sofreu veio de uma “outra cultura”. Do universo sombrio do fundamentalismo religioso, de modo que podemos dizer: por aqui, dois séculos depois de Voltaire, somos diferentes. Superamos o fanatismo, venha ele de onde vier.
E é aí que as coisas começam a embaralhar. Por óbvio não condenamos ninguém mais à morte, por divergência política ou religiosa, fora em um ou outro tuíte ou artigo de jornal, mas andamos longe de um mundo pautado pela tolerância.
Ainda agora, a Fundação para os Direitos Individuais na Educação fez uma ampla pesquisa, nos EUA, perguntado se os cidadãos acham que a democracia está ameaçada “por que as pessoas estão com medo de expressar as suas opiniões”.
EXISTE AMEAÇA – Resultado: 58% dos entrevistados concordaram, parcial ou integralmente. Os números são frios. O interessante mesmo são as histórias. A Fundação identifica casos de professores censurados em universidades por tratarem de temas controversos.
Foram 591 episódios documentados nos últimos sete anos. Um professor é punido por questionar cirurgias transgênero em adolescentes; outro por criticar uma política de cotas e convidar Charles Murray para uma palestra; ainda outros por alguma frase “polêmica” sobre Israel, Maomé, armas, 11 de Setembro, Black Lives Matter.
No conjunto, uma incrível mistura de intolerância, mal-entendidos e prepotência. Uma vergonha, para ser direito, em um universo — a universidade — que deveria ser espaço de diálogo e liberdade.
E NO BRASIL – Uma vergonha e um alerta. No Brasil, parece evidente que também vivemos uma época de intolerância, e é possível que o shilling effect, ou o “efeito medo” já funcione antes de muita gente dizer alguma coisa fora do padrão.
Há uma sociedade polarizada e ficou fácil mobilizar uma pequena horda digital para causar dano a alguém e pressionar instituições, seja uma rádio, seja uma empresa. Por vezes, a coisa não dá certo.
Nesta semana li a cartinha de um grupo de alunos do diretório estudantil da Faculdade de Direito da USP tentando banir Janaina Paschoal no retorno à sua atividade como professora. Os argumentos são conhecidos: ela se aliou ao lado “errado” da política, não assinou a carta que deveria ter assinado, curiosamente em “defesa da democracia”. Talvez por isso o caso tenha ganhado notoriedade. De um lado, a defesa da democracia; de outro, a negação do pluralismo.
DE VOLTA AO PASSADO – Apoiadores do lado político que fez 49% dos votos nas eleições devem ser banidos de uma universidade pública. Fosse isso levado à sério, o Brasil voltaria ao século XVIII, quando luteranos não podiam dar aulas em universidades francesas, e católicos em universidades na Inglaterra.
Sempre me impressiona a repetição de erros velhos. A boa notícia é o sentido didático disso tudo. Ele veio pela mão do professor Floriano Marques, com uma resposta simples aos donos da verdade:
“Discordo da quase totalidade de suas opiniões”, referindo-se à professora Janaina Paschoal, “o que não me impede de respeitar seus pontos de vista”.
DEFESA DE PAINE – As palavras do professor me fizeram lembrar de um grande advogado inglês, Thomas Erskine, que fez a histórica defesa de Thomas Paine, em 1792, acusado de sedição pela Coroa.
Paine havia sido um dos heróis da independência americana, era um republicano e crítico feroz do sistema aristocrático inglês. E havia deixado isso claro com a publicação de “Os Direitos do Homem”.
Criticado por assumir a defesa de Paine, a primeira coisa que Erskine faz é uma vigorosa defesa da advocacia. “O mais precioso bem de um inglês é ter a prerrogativa de um julgamento imparcial”, diz.
NÃO ERAM CRIMES – Ele sutilmente deslocava a questão: seu ponto não era defender as posições de Paine, mas mostrar que, por mais que ofendessem as visões do governo e dos próprios jurados, não eram crimes reconhecidos pela lei inglesa. Era preciso distinguir forma e conteúdo.
As ideias de Paine poderiam ser hostis à Constituição, mas seu direito de as expressar estava protegido por essa mesma Constituição.
Erskine perdeu o caso, mas a história lhe deu razão. Seu argumento traduz a mesma tradição iluminista simbolizada naquele rosto marcado de Salman Rushdie. Tradição que reflete o melhor de nossa herança cultural e que pode nos fazer recuar quando alguém propuser expulsar uma professora com ideias divergentes.
SOMOS COMPLICADOS – Ainda guardo na memória as palavras de Rushdie, naquela noite em São Paulo, dizendo que era um erro reduzir as pessoas a um credo político, identidade ou religião. Que somos mais complicados que isso, e que no fim do dia temos mais em comum com os outros do que imaginamos, e que a literatura é um bom caminho para compreendermos essas coisas.
“Vivi para ver a ascensão e queda de um império”, diz Pampa Kampana, personagem fantástico de seu último livro, “e tudo que resta agora é esta cidade de palavras”. É esse o sentido. Um apelo à humildade intelectual.
O reconhecimento de que nossos juízos por vezes falham, miseravelmente, o que frequentemente parecemos esquecer.