Ogeneral Hamilton Mourão recebeu um dos maiores traficantes de cocaína do Brasil em audiência no Palácio do Planalto quando ocupava a vice-presidência da república.
Pauta do encontro: o fortalecimento do patriotismo no país.
No dia 19 de março de 2019, o então vice de Jair Bolsonaro abriu as portas da sede do governo federal para quatro reservistas do exército.
Entre eles estava Milton Constantino da Silva, 44 anos.
Pouco mais de um ano depois, em 23 de novembro de 2020, preso na “Operação Enterprise”por tráfico internacional de drogas, associação para o tráfico e organização criminosa.
Na página institucional da vice-presidência, não consta a agenda do vice Hamilton Mourão de 19 de março de 2019. Mas uma publicação dos visitantes, com fotos do grupo, afirma que a pauta do encontro foi sugerir “uma série de propostas visando, em especial, uma participação mais efetiva dos reservistas das Forças Armadas Brasileira junto à sociedade brasileira, auxiliando na promoção da cidadania, patriotismo e fortalecendo a Associação de Reservistas”. Um encontro de reservistas que viria a ocorrer no fim daquele ano em Foz do Iguaçu também esteve na pauta.
Edson Mezomo, corretor imobiliário de Foz do Iguaçu (PR) que estava no grupo, contou para a reportagem que o grupo tinha em comum o fato de serem ex-militares e essa pauta juntava os quatro através de contato nos encontros da Associação dos Reservistas do Brasil. Mas que desconheciam totalmente a atividade ilícita de Milton Constantino da Silva. Para eles, um “patriota” que tinha, como eles, o ideal de fortalecer os elos de patriotismo no Brasil.
GRUPO VIAJOU PARA BRASÍLIA EM CARONA DE AVIÃO DO TRÁFICO DE COCAÍNA
De acordo com o corretor, de 59 anos, o grupo organizou e conseguiu uma visita ao general que ocupava a vice-presidência do governo Bolsonaro. Tido como um empresário de sucesso pelo grupo, Milton Constantino ofereceu uma carona para Brasília aos demais em um dos seus aviões, partindo de São José do Rio Preto.
No dia 19 de março de 2019, tiveram o encontro com o anfitrião da carona aérea. Milton Constantino levou-os para mostrar sua fábrica de geradores e depois foram para um hangar na cidade, onde os quatro, juntamente com o suposto empresário e o filho dele, partiram no avião.
VISITANTES FORAM SUBMETIDOS A ENTREVISTA LONGA SOBRE CADA UM, CHECAGEM DE DADOS E HISTÓRICO POR MILITARES DA INTELIGÊNCIA DO GOVERNO BOLSONARO
Em Brasília, o corretor conta que os quatro, que já tinham enviados seus dados pessoais anteriormente, ainda foram submetidos a uma longa e minuciosa entrevista com militares. Sem saber precisar exatamente de que área, sabe apenas que eram do exército. Tiveram toda a vida radiografada, checada, para evitar problemas de exposição ao vice-presidente Hamilton Mourão. O prontuário de Milton Constantino, já ali bem repleto de atividades criminosas com registro, passou batido pelos militares da inteligência ligados ao general.
Aprovados, foram recebidos pelo vice-presidente. Entregaram camisas do grupo, conversaram sobre valores cívicos, patriotismo, planos para que isso fosse mais efetivo no país e também sobre sugestões para um maior aproveitamento de ex-militares, além de conversas sobre como reservistas sentem muito o pós e a falta da caserna. De acordo com ele, foram muito bem recebidos pelo general, que concordou com as pautas.
PRONTUÁRIO DO MEGATRAFICANTE PASSOU BATIDO
A vida dupla de Milton Constantino passou batida.
O ex-militar não era um traficante qualquer.
Um resumo do tamanho do visitante do general Mourão no crime: era o braço direito do ex-major da polícia militar, Sérgio Roberto de Carvalho, o maior traficante brasileiro em atividade por ocasião da operação. Milton Constantino foi apontado nas investigações como um dos líderes da quadrilha, abaixo apenas do “Major”.
No organograma desenhado na “Operação Enterprise”, o lugar do traficante pode ser visto na hierarquia da quadrilha, logo abaixo do líder.
Ainda que a visita tenha precedido a prisão do traficante, o prontuário de chefe de uma organização criminosa internacional já era bastante conhecido anteriormente a ida ao palácio: em 2011, Milton Constantino já havia sido condenado a onze anos de prisão por formação de quadrilha, falsificação de documento público e receptação. A pena prescreveu em 2014 sem punição. E na ocasião da visita, o reservista estava sob investigação da PF.
A Operação Enterprise, fruto de uma investigação da Polícia Federal, foi considerada uma das maiores operações de combate ao tráfico de drogas da história do Brasil. Com a colaboração de autoridades de vários países, como Estados Unidos, Colômbia, Portugal, Espana, Emirados Árabes e Paraguai, foi responsável por desmantelar organização criminosa especializada no tráfico internacional de cocaína e resultou na prisão de dezenas de pessoas, os líderes da organização, na apreensão de toneladas da droga e de milhões de dólares em dinheiro e bens.
Com vários núcleos logísticos para uma engrenagem que movimentava toneladas de cocaína exportadas para o continente europeu, a quadrilha tinha em São José do Rio Preto (SP), o principal centro. Na organização, formavam o núcleo central, o “Grupo Rio Preto” na teia desenhada pela PF.
Os dois prepostos que ocupavam o lugar logo abaixo de Sérgio Roberto de Carvalho na organização eram da cidade do interior paulista, de onde articulavam um rede com um sistema amplo de lavagem de dinheiro: empresas fictícias, utilização de ampla rede de “laranjas”, um sofisticado esquema de transporte aéreo com aeronaves e pilotos próprios, veículos de luxo, imóveis, infiltração nos portos e uma grande rede no exterior.
De lá, Milton Constantino e Sílvio Berri operavam milhões do tráfico internacional.
As investigações da PF sobre a quadrilha começaram em 2017, com a apreensão, no porto de Paranaguá (PR), de 780 kg de cocaína, prontos para embarcar para a Antuérpia, Bélgica. Em um contêiner estava a droga, embalada em tijolos de 1 kg cada.
Os processos relativos ao caso que correm no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) permitem percorrer a trajetória das investigações.
Foi um e-mail grampeado de Milton Constantino para o chefe, o “Major”, que permitiu avançar sobre o desenho completo da teia. Os dois traçavam planos da quadrilha. E ao percorrerem as pistas sobre o ex-reservista recebido por Mourão, os investigadores da PF puderam entender todo o braço financeiro da organização, o sistema de lavagem e a estrutura.
Milton Constantino operou a abertura das empresas de fachada, sempre em nome de laranjas. Através delas, comprou duas fazendas e 17 aviões para a operação. E hoje sabemos que um deles foi usado para irem a Brasília visitar Hamilton Mourão no Palácio do Planalto. As duas fazendas, Mato Grosso e Pará, eram os entrepostos para carregar a cocaína que vinha da Colômbia e da Bolívia.
E São José do Rio Preto, terra do “próspero empresário”, era o ponto de chegada da cocaína nos aviões e o de partida para ser distribuída ao mundo. Em um galpão na cidade, uma das empresas de fachada de Milton Constantino, na maior parte das vezes, se embalava a droga.
O hangar de onde partiam os aviões da quadrilha (e provavelmente de onde partiu o voo da visita a Mourão), pertencia a uma empresa, a “Aviões Net”, cujo dono participava do esquema. Cinco meses antes da visita ao vice, a PF monitorava os passos de Milton Constantino no hangar, como nos relatos de 31 de outubro de 2018, em que se constatou como escondiam a droga. A PF também percorria os caminhos do reservista enquanto ele desembaraçava a documentação para exportação de “laminados de cobre” através das empresas “A Carvalho Medina” e One Way Trade, esta aberta por Milton Constantino com o nome falso de Juliano Marian.
O papel de Milton Constantino na organização foi assim descrito na sentença que decretou a prisão do “empresário”: “líder de grupo estruturado e de importância estratégica nas atividades realizadas pela organização criminosa coordenada por Sérgio Roberto de Carvalho”. Ressalta que, apenas durante o período da investigação, foram monitorados carregamentos de 45 toneladas de cocaína, o que, de acordo com a sentença, mostra “a complexidade e relevância das atividades realizadas por Milton Constantino enquanto responsável pela criação de empresas fictícias para utilização do tráfico internacional de cocaína e ocultação do patrimônio, a capacidade financeira angariada a partir do proveitos advindos do tráfico internacional, utilização de documentos falsos…”, e segue com longa enumeração das tarefas de Milton Constantino.
REPORTAGEM DA AGÊNCIA SPORTLIGHT EM DEZEMBRO DE 2020 MOSTROU QUE MEMBRO DA QUADRILHA TINHA CONEXÕES COM GARIMPO ILEGAL
Reportagem de 14 de dezembro de 2020 da Agência Sportlight de Jornalismo mostrou que Silvio Berri, além de ser peça fundamental da quadrilha do ex-major, era piloto de garimpo e que tinha recebido, durante o governo Bolsonaro, diversas permissões de lavra garimpeira, explicitando as conexões entre o tráfico internacional e o garimpo.
Em seu histórico como bandido, Sílvio Berri tinha ter sido parte das quadrilhas de Fernandinho Beira-Mar e Ernaldo Pinto Medeiros, o Uê.
Embora a pauta que justificou a recepção de Milton Constantino tenha sido “uma participação mais efetiva dos reservistas das Forças Armadas Brasileira junto à sociedade brasileira”, o traficante não chegou a ter destaque nem tempo nas forças armadas que justificassem a legitimação como um interlocutor dessa causa.
A passagem de Milton Constantino nos quadros do exército foi fugaz. Entrou em 10 de março de 1997, se engajou após o serviço obrigatório e, antes de completar seu segundo ano completo, foi para a reserva ainda como soldado em 4 de março de 1999, em razão de um ferimento na mão direita que o incapacitou para o serviço militar, indo para a reforma.
OUTRO LADO:
General Hamilton Mourão:
A reportagem enviou e-mail para o gabinete do senador pedindo para comentar questões relativas ao episódio. Na ausência de respostas, ligamos para o gabinete, pedimos para confirmar o recebimento do e-mail e que fosse encaminhado ao general. Até aqui não houve resposta. Caso seja enviada, acrescentaremos aqui.
Edson Mezomo:
O empresário imobiliário afirma que as atividades ilícitas de Milton Constantino não eram conhecidas pelos demais do grupo. Ao longo da reportagem publicamos suas aspas.
Milton Constantino-
A reportagem não conseguiu contato. Caso seja enviada qualquer resposta, acrescentaremos aqui.
https://agenciasportlight.com.br/