Publicado em 23 de agosto de 2022 por Tribuna da Internet

Pastor Henrique Vieira defende uma igreja progressista
Rodolfo Capler
Veja
Nas eleições de 2018, 68% dos eleitores evangélicos votaram em Jair Bolsonaro. Para muitos analistas, os evangélicos foram responsáveis pela vitória do capitão. Entre outras razões, Bolsonaro conquistou boa parte do eleitorado evangélico por defender a “pauta de costumes”, se posicionando contra o aborto e contra a chamada “ideologia de gênero”.
Apresentando-se como um governante de direita, o atual chefe do Executivo preencheu dessa forma as expectativas conservadoras dos evangélicos, que majoritariamente se identificam à direita do espectro político.
EVANGÉLICOS DE ESQUERDA – Apesar da maioria dos evangélicos se identificar como conservadora, há um significativo contingente de fiéis e de pastores de igrejas progressistas. Movimentos como a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, liderada pelo pastor Ariovaldo Ramos, e a ONG Rio de Paz, presidida pelo teólogo Antônio Carlos Costa, são exemplos das articulações de resistência dos evangélicos progressistas, que cada vez mais ocupam espaços importantes dentro da sociedade.
Para elevar a qualidade do debate sobre esta significativa parcela dos evangélicos, entrevistei um dos seus principais representantes, o pastor batista Henrique Vieira. Aos 35 anos, Vieira é figura reconhecida nacionalmente em razão das suas múltiplas atividades como ator, professor, escritor, poeta, militante e palestrante. É amigo de Caetano Veloso, que gravou seu jingle de campanha.
Em suas incursões artísticas se destacam a atuação no filme “Marighella”, de Wagner Moura, e a participação no disco do rapper Emicida. Vieira é pastor da Igreja Batista do Caminho na capital fluminense e é candidato a deputado federal pelo PSOL/RJ.
Os cristãos devem se envolver com política?
Henrique Vieira –
Na verdade, sim. Política para além de partidos, mandatos e eleições; mas a partir da ética do evangelho e da fé em Jesus. O cristão deve agir politicamente para promover a paz, a justiça, o bem comum; e para defender a causa do pobre e do oprimido. A partir dos princípios do evangelho – sobretudo do amor -, eu acredito que o cristão deve se comprometer ativamente com a construção de uma sociedade justa, solidária e fraterna.
O senhor é pastor da Igreja Batista do Caminho e é candidato a deputado federal pelo PSOL/RJ. A participação de pastores na política não seria problemático para a religião, com o risco de tais pastores usarem a influência religiosa para projetos pessoais de poder?
Este risco existe para quaisquer pessoas. A questão não é ser ou não religioso, ser ou não pastor. A questão é a ética; o que motiva a participação de alguém na política institucional. Este é o ponto fundamental, na minha opinião. Eu sou pastor e sou politicamente engajado desde a minha adolescência. A Igreja Batista do Caminho, comunidade que pastoreio, tem uma construção bíblico-teológica que é coletiva, ou seja, não é centrada na minha pessoa. Nós temos um colegiado eleito em assembleia, de forma que as decisões da igreja são tomadas em conjunto. Entendemos que a figura pastoral é parte da comunidade e não deve se sobrepor a ela. Além disso, temos um revezamento no púlpito, sem interrupções, justamente para que a igreja não tenha apenas uma pessoa lhe provendo ensino. Assim, toda a construção teológica e eclesiológica da igreja não parte apenas de mim, mas de toda a comunidade; é um projeto coletivo.
Neste caso, não existe um domínio dos fieis pelos pastores?
Na Igreja Batista do Caminho, a gente zela muito pela horizontalidade, pela liberdade de consciência, de pensamento e de fé de cada irmão e de cada irmã. As decisões da igreja não são expedições da minha vontade. Em relação a minha atividade política, ela é respeitada por todos. As pessoas entendem que a luta política é uma forma que eu tenho de contribuir para o bem comum. No caso da minha candidatura, fui licenciado do púlpito, justamente para confirmar esse respeito à autonomia da igreja e à liberdade de pensamento e de voto de cada membro da comunidade. Esse é um cuidado que nós temos, para fazermos diferente de muitos pastores que usam o púlpito como palanque eleitoral. Conforme eu já falei em inúmeros lugares, para mim a política é um espaço para servir o povo, buscar o bem comum, a justiça social e para combater as opressões e tudo aquilo que violenta a natureza.
E o estado laico?
A política não é espaço de projeto pessoal de poder, de privilégios e, sequer, da defesa de interesses da igreja. Eu não estou na política para defender as demandas dos evangélicos. Eu defendo o Estado laico, a diversidade religiosa e também a não crença religiosa. Eu não pretendo estar em Brasília para fazer parte de uma Bancada Evangélica. Não é esse tipo de coisa que habita meu coração… Mais uma vez reafirmo: a política é um espaço para servir a coletividade, a diversidade, a democracia e para promover o bem comum. A política é o espaço para defender o direito dos pobres, dos trabalhadores, das mulheres, do meu povo (o povo negro), dos LGBTs, dos sem terra e dos sem teto.
Temos visto muitas igrejas evangélicas cedendo espaço para fazer campanha eleitoral para Bolsonaro, o que fere o princípio da separação entre Igreja e Estado. Conceder espaço a políticos de esquerda nos ambientes de culto, não seria igualmente um erro?
A nossa igreja tem como princípio não ceder esse espaço para nenhum político, seja ele representante de qualquer espectro ideológico. Conforme lhe disse há pouco, estou me licenciando do púlpito para zelar pela consciência de fé e liberdade de voto de cada fiel da minha comunidade. Mas, é preciso desenvolver esse argumento, que é o seguinte: a igreja precisa ter autonomia diante do Estado e diante dos partidos políticos. A igreja não pode ser um braço do Estado ou de um partido, muito menos deve servir como um palanque eleitoral. Ao mesmo tempo, a igreja não pode ser neutra diante da injustiça e da opressão. Ela não pode ficar em silêncio diante do racismo, do machismo, do extermínio da juventude negra nas periferias, da concentração de renda e da desigualdade social. A igreja não pode ser omissa diante do fato de que milhões de brasileiros estão passando fome ou sede. Ou seja, uma coisa é ser autônoma em relação ao Estado e aos partidos políticos, outra coisa é ser uma igreja apática e alienada no que diz respeito à violação e ao sofrimento do povo.
Seria um igreja independente?
Eu defendo uma igreja que respeite o Estado laico, que não tem projeto de poder político e que não faz do púlpito palanque eleitoral. Eu defendo igrejas engajadas politicamente, comprometidas com a justiça social e com a denúncia das injustiças. Agora, chegamos ao desfecho da minha resposta; eu lamento muito que a igreja tenha ficado em silêncio diante da ditadura civil-militar que tivemos em nosso país. Lamento profundamente a igreja que aplaude Bolsonaro ou que fica calada diante dele. Para encerrar meu argumento, penso que, em hipótese alguma, a igreja deve apoiar candidatos políticos.
O pastor batista Martin Luther King Jr., certa vez afirmou: “A igreja não é senhora ou serva do Estado, mas, antes, sua consciência crítica”. Como a igreja evangélica brasileira pode exercer essa vocação de ser consciência crítica do Estado?
Defendendo o direito de quem sofre. Ser a consciência crítica é denunciar que a cada 23 minutos um jovem negro é executado. É denunciar que neste país há uma cultura do estupro e muitos feminicídios sendo praticados todos os dias. Ser a consciência crítica do Estado é ouvir o grito dos povos indígenas, que estão lutando para viver com dignidade. É denunciar os poderosos empresários que dominam e que oprimem a classe trabalhadora. Ser a consciência crítica é se levantar contra o absurdo da fome que assola milhões de famílias. É denunciar a atual política do governo federal que aposta em armas e em munições; e que alimenta a violência, as milícias e as facções criminosas. Ser consciência crítica do Estado é, portanto, chamar a atenção para todas essas realidades que estão maltratando o nosso povo. Essa é a reserva de consciência crítica que Luther King Jr. falava e que nós precisamos atualizar para o Brasil.
O senhor é uma das vozes evangélicas do campo progressista que mais faz autocrítica. Inclusive, manifestou-se inúmeras vezes denunciando a dificuldade da esquerda em dialogar com os evangélicos. Essa dificuldade ainda existe?
Eu acredito que ainda há esta dificuldade. Por diversas razões. Há uma tradição de esquerda europeia, que durante muito tempo rejeitou a experiência religiosa. Também é importante falar que existe uma esquerda latino-americana e, especificamente, brasileira, que já superou isso, pois entendeu que a experiência religiosa pode contribuir para a transformação da sociedade. Exemplos disso são a teologia da libertação, as comunidades eclesiais de base, a teologia negra e a teologia feminista. Ou seja, a esquerda vem aprendendo com o tempo.
Há intolerância religiosa no Brasil?
Precisamos confessar que existem lideranças evangélicas no Brasil, detentoras de muito poder político, econômico e midiático. Essas lideranças têm vozes intolerantes, violentas, contrárias à diversidade e dominadoras dos corpos. Assim dizendo, as grandes referências que aparecem nos principais meios de comunicação, de fato, são referências muito tristes e que impõe pesos sobre as consciências de milhões de pessoas. Com tudo isso que estou dizendo, estou por um lado, reconhecendo os limites da esquerda e, ao mesmo tempo, identificando o seu avanço. Entretanto, é preciso também entender que o cristianismo hegemônico fez parte de um projeto colonizador. Eu, como um discípulo de Jesus, não posso deixar de reconhecer que o cristianismo hegemônico é patriarcal, racista, cis-hetero-normativo e fundamentalista. Isso provoca muito medo, muita violência e muita opressão. Esta é uma questão muito complexa.
Para o Sr., o que seria andar com Jesus?
Comungo de uma tradição que entende que andar com Jesus é defender a causa do pobre e do oprimido. Eu sou apenas mais uma expressão dessa tradição teológica e política. Dom Hélder Câmara, Frei Betto, irmã Dorothy, Ronilso Pacheco, Odja Barros e muitos outros e outras, compõe esse campo cristão popular do qual faço parte. A esquerda precisa se lançar cada vez mais ao diálogo, porém, ela tem avançado nisso, diariamente. Penso que é fundamental para a esquerda dialogar com as pessoas pobres e trabalhadoras, que representam a maioria dos evangélicos no Brasil. É necessário identificar o fundamentalismo e combatê-lo, entretanto, não podemos deixar de olhar para o povo. O diálogo tem que ocorrer a partir disso e não apenas pensando no voto.
Em suas falas, o senhor sempre apresenta Jesus como uma personagem politicamente engajada. Visto que segundo a fé cristã, Jesus é o Filho de Deus e que o seu reino não é “deste mundo”, politizar Jesus não seria uma forma de esvaziá-lo?
Muito pelo contrário. Despolitizá-lo é uma forma de esvaziá-lo. A expressão “Reino de Deus”, que foi a expressão que Jesus mais utilizou, é uma afirmação com consequências políticas. A separação que temos hoje, entre fé e política, simplesmente não existia na época de Jesus de Nazaré. A fé que Jesus tinha, necessariamente, era engajada politicamente. No tempo de Jesus, “rei” representava o imperador romano. Portanto, quando Jesus falava em “Reino de Deus”, ele estava desautorizando o domínio romano sobre o seu povo. Inclusive, ele dá as características desse reino. São todas características históricas, relacionais e políticas. No “Reino de Deus”, por exemplo, tem partilha. Partilha do pão, do peixe e da riqueza. Não faz sentido algum, pensarmos em partilha numa dimensão pós-morte, pois, lá no céu não haverá necessidade de lutarmos por essas coisas. Dessa forma, a partilha como elemento central do “Reino de Deus” é um artifício político e um ensinamento para nós.
O que seria o “Reino de Deus”, na prática?
No “Reino de Deus” há a quebra das hierarquias. Ou seja, os maiores se tornam menores e os menores se tornam maiores, de modo que, neste reino não há apenas uma divisão de bens materiais, mas também de poder, para que todas as pessoas possam ser igualmente valorizadas. No “Reino de Deus”, não é “olho por olho e dente por dente”. Não se responde o mal com o mal. No lugar da vingança, destacam-se o perdão, a mediação de conflitos e a promoção da paz, por meio da justiça. Também não faz sentido falar em perdão numa perspectiva etérea. Precisamos perdoar aqui…