Por Fernando Gabeira (foto)
‘A liberdade do lobo quase sempre significa a morte do cordeiro.’ Essa frase de Isaiah Berlin volta a circular no momento em que a liberdade de expressão torna-se um debate global. Nos EUA, foi intensificado com a compra do Twitter por Elon Musk. No Brasil, é o pretexto de Bolsonaro para perdoar um deputado.
Acho interessante que o pensamento de Isaiah Berlin sobre liberdade volte a ser estudado. Confesso que, há muitos anos, tinha uma certa resistência aos textos de Berlin. Ele desmontava de uma forma implacável o romantismo revolucionário que existia em mim. Foi muito bombardeado pela esquerda, sobretudo a partir da Rússia, por causa de sua amizade com artistas perseguidos pelo stalinismo, como a poeta Anna Akhmátova.
Por que, entre tantos liberais, Isaiah Berlin merece ser descoberto? Ele, de uma forma brilhante, compreendeu que as liberdades humanas não formam um todo harmonioso: podem entrar em conflito umas com as outras e, quando o fazem, devemos escolher entre elas. A inspiração de Berlin foi lutar contra o totalitarismo que falha em proteger liberdades específicas, mas também suprime a própria possibilidade de liberdade.
Creio que um dos pontos importantes para reter é que as reivindicações de liberdade podem entrar em choque com as de segurança e igualdade ou com valores comunitários. Quando isso acontece, uma visão democrática não concede à liberdade um tipo de prioridade absoluta. Se o liberalismo levasse em conta esses argumentos, não aceitaria nenhum tipo de moral universal, não teríamos invasões de países estrangeiros “para implantar a liberdade”.
Foram ideias formuladas no século passado. Mas servem de baliza para o debate no século XXI. A liberdade de expressão, chamada em inglês de free speech, foi o marco que impulsionou as plataformas digitais e as levou, num determinado momento, à necessidade de uma revisão. O discurso de ódio, o racismo, o assédio moral se infiltraram nas redes e criaram uma típica situação em que a liberdade do lobo é quase sempre a morte do cordeiro.
Numa célebre conferência de 1957, “Duas visões de liberdade”, ele se referia aos conceitos romântico e liberal de liberdade. São muito citadas também suas classificações de liberdade negativa e positiva. A primeira significa poder atuar sem a interferência dos outros, inclusive do Estado. A segunda, a liberdade positiva, significa o exercício do autocontrole, atuar de acordo com a razão, coletiva ou individual. Berlin rejeita a ideia de que apenas um modo de viver pode ser totalmente racional. Existe um grande espaço no pluralismo para românticos que acreditam na espontaneidade, religiosos que aceitam restrições.
O interessante é que ele admite certos limites à liberdade negativa para promover outros valores e ideais. Claro que, nesse caso, é preciso cuidado, atuar com muita consciência.
Espero não ter me confundido muito, mas creio que a base do debate está aí. Parece-me que o racismo, a homofobia, o assédio moral entram em choque com valores racionais. Assim como a pregação da violência ou do totalitarismo. Todos esses casos, em alguns países, estão previstos em lei. A afirmação de Elon Musk de que a liberdade seria preservada, com respeito à lei, é um sinal de que o Twitter em novas mãos aceitará os limites legais.
Infelizmente, a interpretação do governo brasileiro sobre liberdade de expressão extrapola os limites da lei. Se considerarmos lei o que está escrito na Constituição, até na opinião de um juiz indicado por Bolsonaro, Daniel Silveira a transgrediu. Bolsonaro recusou essa dimensão da liberdade positiva e afirmou apenas a negativa, a possibilidade de dizer qualquer coisa, em qualquer circunstância, sem nenhuma consequência.
Isso, na verdade, é uma visão anárquica, o paraíso dos lobos.
O Globo