Por Fernando Gabeira (foto)
O mês de maio é muito bonito no Rio. Desfruto as manhãs e, no restante do dia, mergulho nos livros. Ensaios, romances, biografias, tudo que consigo ler antes que o cansaço me derrube.
Coincidência ou não, apesar da beleza dos dias de maio, preparava um texto sobre violência, das chacinas às agressões verbais de nossos tempos.
É mais fácil explicar por que o velho Santiago do livro de Ernest Hemingway pesca um imenso peixe e o perde no caminho da praia do que entender as razões do jovem Salvador Ramos, que matou 19 crianças e duas professoras em Uvalde, no Texas.
Também é muito difícil entender por que uma operação de inteligência resulta na morte de 23 pessoas, na Vila Cruzeiro, no Rio.
Será que estamos falando da mesma palavra quando dizemos inteligência?
No fundo, é possível dizer que políticas públicas estão por trás dessas mortes: a que coloca nas mãos do jovem Salvador dois fuzis; ou a que antevê no fuzilamento em grande escala um trunfo eleitoral.
O que estava preparando para explicar não trata diretamente de massacres, mas sim das condições que tornaram nossas vidas tão expostas à violência.
Meus temas eram a polarização e a violência verbal. Baseado numa análise de Milan Kundera do romance “A montanha mágica”, de Thomas Mann, achei que havia ali algo para compartilhar.
É um momento em que muitos se perguntam quando tudo começou. Foi com a internet, foram certas mudanças na própria estrutura da internet ou as revoltas ao longo do planeta, inclusive a de 2013 no Brasil?
Segundo Kundera, o romance de Thomas Mann, passado na véspera da Primeira Guerra Mundial, foi um terrível questionamento das ideias, um grande adeus à época que acreditou nas ideias e na sua faculdade de dirigir o mundo.
Dois importantes personagens do romance, um democrata e um autocrata, Settembrini e Naphta, são muito inteligentes, discutem intensamente suas ideias e, diante de seu pequeno auditório, extremam os argumentos, a tal ponto de não se saber mais quem reclama do progresso; quem, da tradição; quem, da razão; quem, do irracional.
Algumas páginas depois, já próximo à eclosão da guerra, os personagens sucumbem a irritações irracionais. Settembrini ofende Naphta, batem-se num duelo que acabará pelo suicídio de um deles.
Kundera afirma que o romance não mostra o irreconciliável antagonismo ideológico, mas uma agressividade extrarracional, “uma força obscura e inexplicada que impele os homens uns contra os outros, para a qual as ideias não passam de um guarda-chuva, de uma máscara e de um pretexto”.
Assim, o grande romance de ideias de Thomas Mann é uma espécie de despedida da esperança de que a discussão racional das ideias possa nos levar a bom termo. Havia certo pessimismo naquele momento em que a guerra se aproximava. Mas o que Thomas Mann queria dizer no princípio do século passado seria tão estranho assim aos nossos dias?
É possível dizer que a ampla discussão nas redes sociais passa ao largo dessas forças irracionais, é possível dizer que o confronto ideológico não é mais que um disfarce para o exercício do ódio?
Toda essa digressão não nos exime de criticar as políticas públicas que potencializam a violência: a liberação geral de armas, o estímulo ao fuzilamento de suspeitos. Talvez seja necessário ir mais longe em nossa reflexão. Se é verdade que o choque de ideias já revelava um fracasso na véspera da Primeira Guerra Mundial, aquelas forças destrutivas de qualquer consenso tornaram-se mais ativas.
Não é outro o objetivo das técnicas desenvolvidas na campanha de Trump e exportadas para a extrema direita do mundo, o uso do troll, descrito também como a quantidade de tempo usada para intervir numa conversa e dinamitar as possibilidades de diálogo.
Os tempos em que as ideias dirigiam o mundo já estavam em declínio. Imaginem agora, em que forças políticas se dedicam à lacração ou atuam apenas para impedir qualquer consenso: sobre a forma da Terra, o perigo de um vírus, a importância da vacina. O processo de autodestruição, tão nítido no meio ambiente, é também assustador na trajetória democrática.
O Globo