Poucos dias depois do massacre em que um supremacista branco matou dez pessoas e feriu outras três na cidade de Buffalo, estado de Nova York, os americanos se viram diante de outra tragédia. O jovem Salvador Ramos, de 18 anos, entrou numa escola da pequena cidade de Uvalde, no Texas, armado de revólver e fuzil. Matou 19 crianças e dois adultos antes de ser abatido pela polícia. O presidente Joe Biden, emocionado, prometeu dar um “basta!” na facilidade com que os 330 milhões de americanos compraram 400 milhões de armas, mais de uma por habitante.
A compreensível irritação do presidente dos Estados Unidos, porém, não deverá passar disso. O direito ao porte de armas, garantido pela Segunda Emenda à Constituição, está consolidado na sociedade americana e é explorado em todas as eleições pelo poderoso lobby armamentista da Associação Nacional do Rifle (NRA).
A tragédia americana serve de alerta para o Brasil. Os Estados Unidos são um modelo para o presidente Jair Bolsonaro, que já tomou diversas medidas para facilitar o acesso dos brasileiros a armas e munições. Um país como o Brasil, com 2,7% da população mundial, já é responsável por 13% dos homicídios no planeta. Para reduzir a violência, o certo, como demonstram dezenas de estudos acadêmicos, seria fazer o inverso: desarmar a população.
Nem bem assumira, no dia 15 de janeiro de 2019, Bolsonaro já baixou um decreto armamentista, dizendo que atendia ao pedido do povo, expresso no referendo de 2005 sobre o Estatuto do Desarmamento (64% foram contrários à proibição do comércio de armas). Congresso e Justiça reagiram. Bolsonaro revogou o decreto, editou três outros e prometeu enviar um Projeto de Lei ao Congresso. Hoje ele tramita entre Senado e Câmara, repleto de emendas. Enquanto isso, o presidente adotou atalhos para ampliar o acesso às armas, favorecendo o grupo conhecido pela sigla CAC (Colecionador, Atirador Esportivo e Caçador).
Enquanto o Supremo ainda não julgou a constitucionalidade de seus decretos, as licenças para aquisição de armas aumentaram 325% nos últimos três anos. O número de CACs chegou a 1,8 milhão. Já existe no mercado da burocracia o “despachante bélico”, com site na internet pronto para ajudar o cidadão. O resultado é previsível: armas legais, furtadas ou roubadas em assaltos, se tornaram uma fonte de abastecimento da criminalidade.
Bandidos compram armas e munições usando licenças de CACs, que dão autorização para comprar até 60 artefatos. Em janeiro foi preso no Rio um CAC conhecido como “Bala 40”, que guardava um arsenal numa casa de classe média no Grajaú: 26 fuzis AR-25 e 556, três carabinas, 21 pistolas, dois revólveres, uma espingarda calibre 12, um rifle, um mosquetão, além de caixas de munição para fuzis, um patrimônio bélico avaliado em R$ 1,8 milhão. Todas as armas foram compradas legalmente para ser entregues a uma das principais facções criminosas do Rio.
Na antológica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, Bolsonaro bradou que “povo armado jamais será escravizado”. Pode haver várias interpretações da frase. Mas não há dúvida, como demonstram as sucessivas tragédias americanas, de que facilitar o acesso às armas é um equívoco — que precisa ser barrado pelas demais instituições da República.
O Globo