POR SERGIO DUARTE*
Desde o início da Era Atômica a construção e operação de usinas nucleares de produção de energia elétrica e outras instalações tem sido objeto de desconfiança e críticas, nem sempre bem fundamentadas, devido à possibilidade de desastres potencialmente graves com contaminação por radioatividade e outros perigos colaterais. Tais desastres, efetivamente, podem ocorrer seja por imperícia ou erro humano na operação de instalações e no manejo de substâncias radioativas, seja pela ação deliberada de agentes não estatais ou ainda por acidente ou desígnio no caso de ações militares em situações de conflito armado entre estados. Um exemplo do primeiro caso ocorreu em 1987, devido ao manuseio de um aparelho de radioterapia indevidamente abandonado em Goiânia que provocou lesões em dezenas de pessoas inadvertidamente expostas ao material radioativo, inclusive alguns óbitos.
Outros graves acidentes em diferentes partes do mundo foram os decorrentes do superaquecimento do núcleo do reator da usina de Three Mile Island, no estado norte-americano da Pensilvania, em 1979, atribuído a falhas na manutenção e operação; igualmente, a explosão, em 1986, do reator no. 4 da usina de Chernobil, a 150 quilômetros da capital da Ucrânia, durante um teste no qual os sistemas de segurança e de emergência haviam sido intencionamente deligados; e o mais desastroso de todos, devido ao derretimento de três dos seis reatores na central nuclear de Fukushima, ao norte de Tóquio, em seguida a um tsunami que inundou a usina, em 2011. A Comissão independente de investigação concluiu que as causas diretas desse último acidente eram todas previsíveis.
A possibilidade de acidentes nucleares provocados pela ação de elementos não estatais motivou a adoção, em 2005, da Resolução 1504 pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Essa Resolução, juridicamente vinculante para todos os estados-membros da organização, estabelece a obrigação de não fornecer qualquer forma de apoio a tais agentes para o desenvolvimento, aquisição, fabricação, posse, transporte, transferência ou uso de armas de destruição em massa seus vetores. Todos os estados devem, em consequência, adotar e fazer cumprir legislação interna que proíba tais atividades, especialmente com finalidades terroristas.
Ataques militares no Oriente Médio e na Ucrânia
Existe considerável preocupação com as consequências de eventuais ataques militares contra instalações nucleares em funcionamento e portanto capazes de provocar dispersão de radioatividade sobre zonas povoadas contígua ou outros efeitos altamente negativos. Na atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia centrais nucleares de grandes dimensões têm sido alvo de operações militares. No século passado instalações nucleares localizadas no Oriente Médio foram igualmente objeto de ataque em enfrentamentos militares.
O primeiro dos incidentes registrados nessa última região ocorreu em 30 de setembro de 1980 com um ataque levado a cabo pelo Irã contra o centro de pesquisas iraquiano de Al Tuwaitha, 18 km ao sul de Bagdá, no contexto da guerra entre os dois países. Os danos foram de pequena monta e puderam ser reparados. Durante a guerra com o Irã o Iraque realizou ao todo sete incursões contra dois reatores em construção em Bushehr, no território do adversário, que causou danos consideráveis. Eses ataques, contudo, não produziram contaminação radioativa, já que o combustível nuclear não havia ainda sido instalado. Em junho de 1981 as instalações de Tammuz-1 e 2, no Iraque, foram atacados pela força aérea israelense, sofrendo prejuízos irrecuperáveis. Mais tarde verificou-se que ocorrera uma dispersão significativa de radioatividade.
Novos e mais contundentes ataques contra Al Tuwaitha foram realizados por aviões norte-americanos em 19 de janeiro de 1989, destruindo dois reatores de pesquisa em funcionamento além de laboratórios, centros de fabricação de combustível e estações de tratamento de rejeitos. No entanto, essas instalações se encontravam sob salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Em 17 de fevereiro de 1991 o Iraque lancou seis mísseis Scud contra o centro israelense de pesquisas Dimona, no Negev, onde há reatores para produção de plutônio e trítio para as armas nucleares do país. Os mísseis, porém, não alcançaram o objetivo e o ataque não teve consequências ambientais negativas e tampouco para o programa nuclear de Israel.O último ataque dessa natureza ocorrido no Oriente Médio foi realizado por Israel em 6 de setembro de 2007 contra instalações sírias em Al- Kubar, com a justificativa de impedir a construção de um reator nuclear fornecido pela Coreia do Norte.
A Ucrânia, por sua vez, tem uma longa experiência na construção e operação de usinas eletronucleares. Existem atualmente quatro dessas instalações em funcionamento em diferentes pontos do território, com 15 reatores com potência total de mais de 13 GWe, que forneceram em 2020 50% da energia elétrica consumida no país.
Em 24 de fevereiro último, quando a Rússia iniciou a invasão do país vizinho por suas forças militares, a Agência Internacioal de Energia Atômica (AIEA) foi informada pelas autoridades ucranianas da imposição de lei marcial em todo o país e de um alerta relativo à situação da usina de Chernobil. Ppoucos dias depois do início das hostilidades a usina foi ocupada por tropas russas sob a justificativa, comunicada à AIEA, de “impedir atos deliberados de sabotagem”. A comunicação derivava da Convenção sobre notificação tempestiva de incidentes nucleares [1], que obriga os estados a notificar imeditamente aos países que possam ser prejudicados qualquer incidente capaz de provocar contaminação radioativa através de fronteiras internacionais. Como indicado acima, o complexo dispunha de quatro reatores, um dos quais havia explodido em 1986, quando a Ucrânia fazia parte da União Soviética, gerando graves prejuízos e lançando nuvens radioativas sobre a região vizinha e gande parte da Europa. Falhas técnicas no projeto da usina foram apontadas como em grande parte responsáveis pelo acidente.
A usina de Chernobil fica próxima à fronteira entre a Ucrânia e Belarus e por ocasião da invasão encontrava em obras para contenção de perigos ainda existentes. Os trabalhos, porém, ainda não estão completamente concluídas e algumas fases somente serão completadas em 2046. A destruição das estruturas com segurança está prevista para 2064. Na ampla zona de exclusão em torno da usina existem estações de tratamento e depósitos provisórios de rejeitos.A ocupação russa da usina terminou em 31 de março e atualmente funcionários ucranianos tratam de prosseguir as obras apesar das dificuldades decorrentes da destruição de pontes e atividades de desminagem.A AIEA avalia que os níveis de radiação não oferecm perigo para o público.
Em 4 de março a Ucrânia informou a AIEA que forças russas haviam tomado controle do complexo eletronuclear de Zaporiszhshya, o maior da Europa, que possui seis reatores com potência total de 5.700MWt, e em 6 de março comunicou à Agência a ocorrência de um pesado bombardeio contra a fonte de neutrônios de KIRP, em Kharkhiv, com danos materiais significativos. A AIEA levou a cabo duas missões na Ucrânia, em 29-31 de março e 25-28 de abril, chefiadas pelo diretor-geral Rafael M. Grossi, a fim de examinar a situação e propor medidas de assistência para reduzir a possibilidade de graves riscos.
A situação atual em Zaporiszhshya não é muito clara. Três unidades de geração de energia funcionam a plena potência e as outras três estão desconectadas da rede elétrica. Combates ocasionaram danos nas linhas de transmissão de energia elétrica, ainda não completamente restabelecidas. Segundo a AIEA, a usina pode continuar a funcionar com certo grau de segurança utilizando a energia dos geradores de emergência. O pessoal ucraniano continua a operar regularmente as instalações, porém sob controle militar das forças invasoras e com a presença de técnicos da empresa nuclear russa Rosatom, o que tem gerado impacto negativo sobre a moral das equipes ucranianas. As demais centrais nucleares do país estão funcionando normalmente.
Embora até o momento o envolvimento de instalações nucleares ucranianas em operações militares na guerra em curso não tenha produzido vítimas e tampouco contaminação radioativa, o tema exige atenção devido ao prosseguimento do conflito para o qual não se pode antever uma breve solução.
Normas internacionais para prevenção de ataques
Desde a metade do século passado a comunidade internacional procurou desenvolver normas de direito humanitário sobre proteção a reatores e outras instalações nucleares em tempo de guerra, baseadas nos princípios da distinção e da proporcionalidade, com a finalidade de reduzir sofrimentos e danos para as populações civis e combatentes afetados. Segundo as normas hoje vigentes, as forças atacantes estão obrigadas a tomar precauções para distinguir os objetivos, que não devem ser pessoas nem instalações civis como tais. Em caso de ataques contra objetivos militares, o segundo princípio exige que as mortes e danos colaterais não sejam excessivos nem deproporcionais em relação à vantagem concreta militar prevista. Ainda com base no direito internacional humanitário, objetos específicos como bens culturais, locais de culto, estruturas e pessoal médico, por exemplo também se beneficiam de proteção.
Em 1956 o Comitê Internacional da Cruz Vermelha introduziu o conceito de proteção especial a instalações que contenham “forças perigosas”, como represas e barragens hídricas. Essa proposta foi posteriormente estendida a instalações eletronucleares e aprovada em 1977 para inclusão nos Protocolos Adicionais I e II à Convenção de Genebra de 1949. Contudo, a definição de “forças perigosas” exclui da mesma proteção algumas instalações nucleares importantes, como reatores de pesquisa e depósitos de rejeitos radioativos. Nem todos os países são Parte dos Protocolos: o Irâ, o Paquistão e os Estados Unidos são signatários mas não os ratificaram, enquanto a Coreia do Norte, Israel, Turquia e alguns asiáticos ainda não assinaram. Uma comissão de juristas encarregados pela Cruz Vermelha considerou que essas normas pertencem à esfera do direito internacional consuetudinário, o que significa que todos os estados as devem respeitar, independentemente de sua participação no Protocolo respectivo.
Devido ao grande número de instalações nucleares em muitos países do mundo é importante que a comunidade internacional continue dedicada ao aperfeiçoamento das normas de direito humanitário aplicáveis aos conflitos armados a fim de prevenir, e em casos extremos lidar com as consequências acidentais ou deliberadas do impacto de operações militares.
[1] A Convenção data de 26 de setembro de 1986.
*Embaixador, ex-Alto Representante da ONU para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais.
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