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domingo, maio 29, 2022

Homens de família

 



O bate-boca virtual entre Eduardo Bolsonaro e Luiz Claudio Lula da Silva expõe o filhotismo que iguala Jair Bolsonaro e Lula na pior tradição política brasileira.

Por Claudio Dantas 

Dias atrás, usuários do Twitter testemunharam um bate-boca virtual entre Eduardo Bolsonaro e Luís Cláudio Lula da Silva, o Luleco, em torno do episódio envolvendo o roubo do celular deste último, por quatro adolescentes, em São Paulo. “É expropriação que fala? Ou seria mais adequado 100 anos de perdão?“, provocou o filho 03 de Jair Bolsonaro. Dois dias depois, o caçula de Lula reagiu: “Dudu bananinha é um ser desprezível mesmo! Eu não acredito que adolescentes cometam crimes porque gostam… Eles cometem crimes porque temos um governo federal omisso, que não liga para a população“, escreveu, justificando indiretamente declaração anterior em que o próprio pai relativizava o crime. Luís Cláudio aproveitou o ataque para disparar também contra o presidente, principal rival de Lula em outubro. “Um patriarca egocêntrico, incapaz e limitado não teria como criar uma família de forma decente.” A tréplica veio no dia seguinte, com o deputado federal, desafiando o filho do petista a se candidatar na política. “Luleco, você quer mesmo discutir comigo? Candidate-se. Sério mesmo. Eu acho que você enriqueceria o debate.”

A troca de mensagens entre os filhos presidenciais, naturalmente, não enriqueceu e nem enriquecerá o debate público. Por qualquer ângulo que se olhe, seja intelectual, moral ou empresarial, Eduardo e Luís Cláudio pouco têm a oferecer à sociedade. Até aqui, apenas se serviram dela. Como herdeiros da influência política de seus pais, nunca precisaram suar a camisa para ganhar o próprio sustento, nem deixaram exemplos que edifiquem suas vidas públicas. Ambos devem as carreiras, tanto na política como nos negócios, aos respectivos genitores. Foi a partir da ascensão de Lula ao poder que ‘Luleco’ enveredou pelo marketing esportivo, chegando a comandar um campeonato nacional de futebol americano. Mesmo sem audiência ou público relevante, o rapaz conseguiu atrair patrocínios milionários de grandes grupos empresariais que se expandiram na gestão petista, como Ambev (via Budweiser), Qualicorp, TNT (Cervejaria Itaipava) e Grupo CAOA (Hyundai do Brasil). Como revelou a Lava Jato, a Touchdown, empresa de Luís Cláudio, recebeu ao menos 10 milhões de reais em apoio financeiro. Deste total, 2 milhões de reais saíram da Odebrecht, que, segundo um delator, atendeu a pedido pessoal de Lula para ajudar a “lançar” a carreira do caçula.

Foi também sob a sombra do pai que Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha, passou de monitor de zoológico a empresário de tecnologia, abrindo um conjunto de empresas bem sucedidas. Gamecorp, a principal delas, obteve milionários aportes da Oi, gigante da telefonia beneficiada por um decreto assinado pelo próprio Lula. Ao todo, a empresa de Lulinha faturou mais de 317 milhões de reais. “Que culpa tenho eu se meu filho é o Ronaldinho dos negócios?“, disse o petista, em 2006, ao ser questionado sobre o repentino sucesso do filho. Até hoje, Lulinha mora num apartamento de luxo registrado em nome de Jonas Suassuna, seu ex-sócio, que também aparece como um dos donos formais do sítio de Atibaia, ao lado de Kalil Bittar, amigo de infância e também sócio de Lulinha em outras empresas. Há dois anos, Crusoé mostrou que o primogênito do petista mantinha uma vida para lá de confortável, enquanto se beneficiava de decisões judiciais que engavetaram seus processos — assim como os de seu irmão mais novo, Luís Cláudio. Na ocasião, Fábio Luís deixou a Gamecorp e, recentemente, abriu a LLF Tech Participações, registrada em seu endereço residencial. Apesar de não haver registro conhecido de qualquer atividade, a empresa tem como objeto social uma ampla gama de serviços, como suporte técnico, criação de portais, consultoria, marketing, produção cinematográfica e de programas de televisão. Luís Cláudio também abriu uma nova empresa, a Educaremos Agenciamento De Cursos, em sociedade com Maria Beatriz Lula da Silva, filha de Lurian e neta mais velha do ex-presidente. A sede está registrada num sobrado em São Bernardo do Campo, sem atividade aparente. Bia Lula chegou a presidir o PT de Maricá (RJ) e Luleco ficou até agosto do ano passado abrigado no gabinete do deputado estadual Emídio de Souza, na Alesp. Nos últimos anos, também seu uniu à militância petista o neto Thiago Trindade, filho de Marcos Cláudio. Bem menos ambicioso que os tios, ele abriu uma loja virtual para vender artigos com a imagem do avô, como camisas e canetas.

No atual clã presidencial, a história não é tão diferente. Ao longo de quase três décadas como deputado federal, Jair Bolsonaro usou sua influência para eleger a ex-mulher Rogéria e os três filhos que teve com ela: Flávio, Eduardo e Carlos. Montou uma espécie de rede de gabinetes, que absorveram mais de uma centena de parentes e amigos, movimentando no período mais de 65 milhões de reais em salários, gratificações e outros benefícios — cerca de 21 milhões de reais foram pagos a familiares diretos. Na denúncia, arquivada recentemente pelo Tribunal de Justiça do Rio, o Ministério Público diz que parte expressiva desse dinheiro retornou aos cofres da família, por meio de saques dos salários dos funcionários, pagamentos de contas pessoais e compra de imóveis. Seguindo o roteiro percorrido por Lulinha, o primogênito dos Bolsonaro se tornou ‘leading case’ da família, caiu nas garras da Justiça, mas acabou se livrando dos processos após muita chicana jurídica. No ano passado, comprou uma mansão de 6 milhões de reais em Brasília, tirou a carteirinha da OAB para atuar no Distrito Federal e se aproximou de escritórios de lobby — não necessariamente nesta ordem.

O irmão Eduardo não ficou para trás. Insatisfeito com a vida de escrivão de polícia, resolveu entrar para a política em 2014 e não saiu mais. Na eleição que levou seu pai ao Palácio do Planalto, há quatro anos, foi eleito deputado federal com a maior votação da história (1,8 milhão de votos), superando Enéas Carneiro. Aproximou-se de empresários paulistas de perfil conservador e foi alçado a porta-voz do trumpismo no Brasil. Em 2019, tentou em vão virar embaixador nos EUA, mas seu passado de chapeiro de lanchonete não ajudou. Ao defender a indicação do filho para a embaixada em Washington, Bolsonaro não escondeu suas intenções. “Pretendo beneficiar um filho meu, sim. Se eu puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou, sim“, admitiu, numa de suas lives. Vetado informalmente pelo Senado, o 03 retirou sua candidatura a embaixador e abandonou a ideia de virar diplomata. Virou representante sul-americano do ‘The Movement‘, grupo de extrema-direita criado por Steve Bannon e passou a fazer lobby para fabricantes de armas e donos de cassinos. Com menos desenvoltura para os negócios que os irmãos, Carlos Bolsonaro também passou a vida pendurado na teta do Estado. Eleito vereador com apenas 17 anos, nunca entrou numa fila de emprego. Três anos depois de assumir o primeiro mandato, comprou seu primeiro apartamento por 150 mil reais — na ocasião, seu salário era de apenas 4,5 mil reais. Nos anos seguintes, adquiriu outros quatro imóveis. O mais recente foi um flat, de 470 mil reais, em Brasília, pago à vista. Está em seu sexto mandato de vereador e dedica-se diuturnamente à estratégia digital do pai, tendo sido apontado por investigações parlamentares e judiciais como chefe do ‘gabinete do ódio’. Também virou alvo do Ministério Público do Rio por suspeita de empregar funcionários fantasmas para desviar salários.

Caçula da família, Jair Renan ainda não entrou na política, mas já vive dela. Logo após a eleição do pai, aproveitou o sobrenome para angariar seguidores no TikTok e vender acesso ao poder. Com ajuda de um lobista citado na CPI da Pandemia, montou uma empresa de eventos (Bolsonaro Jr Eventos e Mídia) e passou a circular pela Esplanada. Acabou virando alvo da Justiça por suspeita de tráfico de influência, acusado de levar empresários para agendas com ministros. Em troca, teria recebido presentes caros, como um veículo elétrico avaliado em 90 mil reais. As investigações avançam e já descobriram que seu escritório, sediado no estádio Mané Garrincha, foi bancado pelo empresário Luís Felipe Belmonte, apontado como um dos organizadores dos atos antidemocráticos. Ex-advogado de Luiz Estevão, Belmonte ficou milionário negociando precatórios. Ele já foi filiado ao PSDB, elegeu a mulher, Paula Belmonte, deputada federal pelo Cidadania e seria o vice-presidente do Aliança pelo Brasil, partido que Bolsonaro tentou criar. 

No ano passado, o delegado que investigava o filho 04 do presidente foi removido do cargo. Em entrevista recente, Jair Renan negou as acusações e se disse “revoltado”. Em Brasília, ele mora numa mansão avaliada em 3,7 milhões de reais, supostamente alugada pela mãe, Cristina Valle, também suspeita de integrar o esquema de rachadinhas investigado pelo MP do Rio.

O filhotismo não é uma característica exclusiva de Lula e Jair Bolsonaro, mas mostra como eles são “homens de família” na pior tradição política brasileira. A frase de Jair Bolsonaro sobre a indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada nos EUA — “Pretendo beneficiar um filho meu, sim. Se eu puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou, sim” — é ilustração perfeita de uma distorção que nos acomete desde os nossos primórdios como nação. O filhotismo é uma extensão natural do patrimonialismo, uma herança absolutista que está acima de quaisquer ideologias no Brasil. No patrimonialismo, não existe distinção entre público e privado, entre o que é dos cidadãos e o que é da família cujo patriarca ascendeu ao poder, não importa por qual via. Ele e os seus parentes diretos sentem-se livres para se apropriar indevidamente do que deveria ser da sociedade. Sentem-se livres e, pior, a expectativa geral é que se comportem dessa maneira mesmo, tal é o grau de entranhamento do tumor patrimonialista no tecido sociopolítico nacional. Na sua forma mais arcaica, ele se manifesta por meio da usurpação de direitos e do cancelamento de deveres; na sua forma mais moderna, por meio do tráfico de influência e da corrupção.

As origens do patrimonialismo foram perfeitamente identificadas e analisadas em clássicos da sociologia e da história, como Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Os Donos do Poder, de Raimundo Faoro. Este último sintetizou o problema da seguinte forma:

“De Dom João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo. O capitalismo politicamente orientado — o capitalismo político, ou o pré-capitalismo —, centro da aventura, da conquista e da colonização moldou a realidade estatal, sobrevivendo, e incorporando na sobrevivência o capitalismo moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do indivíduo — liberdade de negociar, de contratar, de gerir a propriedade sob a garantia das instituições. A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade se assenta no tradicionalismo — assim é porque sempre foi.”

De Getúlio Vargas a Lula e Bolsonaro, o patrimonialismo resiste e se reproduz por meio do filhotismo, que também serve para renovar as velhas oligarquias e as substituir, no fio do tempo, por outras, de agregados que souberam infiltrar-se na casa-grande dos patriarcas, tornando-se eles próprios chefes de clãs. Luís Cláudio Lula da Silva tem razão ao chamar Jair Bolsonaro de “patriarca egocêntrico“, mas deveria olhar também para dentro de casa. Uma casa-grande, apesar de todo o verniz esquerdista.

Revista Crusoé

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